3.12.24

Sindicato das crianças enganadas pelo Natal (conto pré-natalício em registo de marxismo precoce)

Michael Kiwanuka, “One and Only”, in https://www.youtube.com/watch?v=seM1jQQ2Abs

Convocatória de greve geral das crianças, para um dia destes: sem pré-aviso, sairemos de casa sob protesto para os nossos pais saberem que vamos contrariados para a escola. Uma vez chegados à escola, recusar-nos-emos a comparecer nas aulas.

Fundamentação:

Não queremos continuar a de ser enganados pelo imaginário do Natal construído pelos mais velhos. Vamos a um centro comercial, ou a uma feira de Natal, e posamos com o Pai Natal. Chegamos à escola e mostramos as fotografias uns aos outros para descobrirmos que: ou o Pai Natal consegue o milagre de estar no mesmo sítio ao mesmo tempo; ou é um intrujão, fazendo-se passar por quem não é; ou, afinal, não existe. Podiam admitir, os gestores do Natal e os nossos pais, que não há o Pai Natal, que há, talvez, milhões de Pais Natal espalhados pelo mundo, mas que são personagens simbólicas. Podiam confessar-nos que não existe uma pessoa chamada Pai Natal. 

Estamos cansados da infantilização que é um anátema, como se fizessem de conta que não somos de uma geração diferente, com acesso a telemóveis por sua vez com acesso ao mundo (existente, imaginário e o do Trump) que nos trazem a informação que os mais velhos, quando tinham a nossa idade, nem sonhavam ser possível existir. Estamos revoltados por os nossos pais e os nossos familiares chegados insistirem na mesma infantilização de que foram vítimas quando tinham a nossa idade. Queremos ser a última geração vítima desta infantilização. Juramos que não faremos dos nossos filhos e sobrinhos uma gesta infantilizada.

Não queremos continuar a pactuar com a mitologia do Natal que é uma pura falsificação. Não é preciso ser perspicaz para descobrir que as prendas de Natal não são distribuídas por um consórcio de Pais Natal locomovidos por remas, porque as renas não voam e ninguém nos revelou pormenores sobre o franchising do Pai Natal. Já não somos ingénuos para nos contarem a patranha das prendas que descem pela chaminé, porque no regime de propriedade horizontal, hoje dominante, a chaminé é por prédio e as prendas de Natal não são uma encomenda coletiva.

Como temos uma precoce, mas bem informada, consciência de classe, queremos denunciar o Natal pelos efeitos nocivos para a justiça social. Há muitas crianças que não podem sonhar com o Natal fantasioso que o capitalismo propaga para as domesticar desde a infância. Insistir na celebração fraudulenta da quadra arrasta muitas crianças para a melancolia por não terem acesso a um módico de generosidade natalícia a que as crianças favorecidas têm direito. Persistir no Natal assim encenado é perpetuar as desigualdades, castrando os sonhos que essas crianças não podem a experimentar.

Pelo exposto, faremos greve às aulas e à sopa por dois dias, em dia que nos apetecer, sem estarmos vinculados a um pré-aviso. (Como somos menores, a inimputabilidade perante a lei dispensa-nos das suas exigências.). Deixamos, à consideração de quem gere o Natal, a exigência que o Natal deixe de ser como é, para não continuarmos a ser infantilizados como somos. 

2.12.24

Se não fosse a poesia

The Cure, “A Night Like This”, in https://www.youtube.com/watch?v=KE1nu67-U2I

“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. Shelby

O nevoeiro que se mete no caminho da luz inaugural desenha novas formas de luz que de outro modo não seriam conhecidas. A penumbra insinua-se em feixes de luz que não foram cooptados pela cortina baça que vai colonizando o dia. Ao contrário dos lugares-comuns, que depressa amaldiçoam a manhã tingida de nevoeiro que indispõe as pessoas, o nevoeiro não é sinónimo de mau tempo. 

Um efémero exílio pelas montanhas coalesce o silêncio que acompanha o refrigério da alma. No campo de visão não há vivalma, nem estradas que possam desvendar um veículo furtivo só para interromper o exercício heurístico do dia. Não se diga aos capatazes das modas que este é um lugar a visitar. Às vezes, o egoísmo tem sentido. O silêncio extingue as armadilhas da cidade. Nem que seja efémero, este é um exílio de que não se pede escusa. 

Um pássaro tomba estrepitosamente no passeio, para sobressalto de quem passa. Acometido de síncope fulminante, caiu a pique. Ninguém pode fugir ao colostro da morte. Ela está de atalaia, envia sinais para que ninguém se esqueça dela. É o incentivo para devermos à vida o modesto pecúlio do tempo que a faz sempre breve.

Duas pessoas discutem com veemência. Não estão para chegar a vias de facto: é uma discussão acalorada, fervida nas divergências que sabem tutelar. À sua volta, as pessoas não podem deixar de ouvir a contenda. São como agentes que escrutinam o mercado de ideias que desfila à sua frente. Não podem ser indiferentes. Todos acatam um código de honra implícito: não se metem no meio da conversa, tomam notas mentais para serem os síndicos do fecundo laboratório de ideias.

Um homem a meio caminho entre a meia-idade e a terceira idade recita as pendências a que recusa dar vencimento: a política, os partidos e os escanções da política; os grandes empresários que querem liberdade mas estão sempre a estender a mão para o subsídio ou o corte de impostos; os eternos candidatos a isto e aquilo também, autoproclamados “reservas da nação” (sem perceberem que quem passou à reserva deixou de contar); os que se deitam ufanos porque conseguiram influenciar milhares de acéfalos seguidores; os artistas que se empenham na cidadania, acabam a fazer política e passam a ser contumazes às artes (com perda para as artes e ganho nenhum para o resto); os jornalistas que clamam por imparcialidade e mentem com os dentes que têm; os humoristas que entretêm os outros com a sua (dizem) contagiante boa disposição e com o humor inestético; os narcisistas incorrigíveis; os falsos modestos (o avesso dos narcisistas); os que estão convencidos que estão acima dos demais e mesmo assim não se cansam de apregoar a igualdade; os que vivem agarrados à razão, nem que tenham de recorrer à desonestidade intelectual; aquele viveiros de gente anónima que aspira a trepar uns degraus na hierarquia da popularidade, para tirarem os seus nomes do reduto da indiferença; os mitómanos profissionais; os trapezistas que dizem hoje uma coisa e amanhã o seu contrário e continuam a ser propugnáculos da coerência; os penhores da moralidade e os que tiraram a carta de cuidadores das almas desvalidas; os que só sabem das vidas alheias sem saberem tutelar a própria; os que dispõem de crédito máximo no mercado da arrogância; os eternamente desconfiados de toda a gente.

E jurou: em vez desta gente toda, mergulharia numa dose diária de poesia.