2.11.17

O farol e a estátua

Tricky ft. Francesca Belmonte, “Nothing’s Changed” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xSpmnjbomx0    
O farol tutelava a imensidão do mar que vinha desaguar à costa. À noite, da sua luz circundante e com o auxílio do zunido em dias de nevoeiro, o farol resguardava os navios, que se guiavam pelo feixe sincopado (mesmo tendo instrumentos de navegação mais avançados; os marinheiros ainda desconfiavam da tecnologia – não a consideravam imune a anomalias). Na retaguarda do farol encontrava-se uma estátua. A estátua de um marinheiro de antiga cepa – o marinheiro intrépido, que convencera outros como ele a pescar em longínquas águas gélidas, já perto do ártico, e distribuíra fortuna pelos seus e demais conterrâneos.
Um dedo indicador do marinheiro apontava na direção do farol. Não era por acaso. Quando a estátua foi encomendada, o edil tivera a ideia de a colocar num pedestal sob a jurisdição do farol, com ordem precisa de que um dedo indicador do marinheiro estaria na direção do farol. Uns acharam que o marinheiro a prestar vassalagem ao farol – a todos os faróis que foram candeias para o seu navio enquanto esteve no ativo. Outros consideram um despautério e acusaram o edil de faltar ao respeito à memória do marinheiro, de todos os marinheiros que encontraram sepultura nos mares profundos. Protestavam contra a desonra de esculpir uma estátua de alguém que viveu do mar e nele morreu, com o dedo espetado para o farol, como se o farol se sentasse no banco dos réus pelo decesso da tripulação do navio comandado pelo marinheiro.
A polémica perdurou e tornou-se política, violenta. O edil, em vez de deixar o banzé para os críticos e para os contracríticos, não se calou. De cada vez que falava, entontecia-se com argumentos díspares – ora defendia a obra; ora acusava o escultor, como se ele não tivesse entendido as instruções; ora tecia um argumentário ininteligível. Indiferentes à vozearia estéril, o farol e o marinheiro mantinham diálogo perene, que nem na noite adormecia. Eram surdos, a não ser para as palavras que trocavam entre si: o marinheiro estatuado e o farol falavam a linguagem dos homens do mar. Só eles mantinham circuito direto para o diálogo.
Talvez por isso, os demais, entretidos em querelas espúrias, fossem forcados em arena deserta. Se ao menos soubessem ser intérpretes dos augúrios do mar, manter-se-iam calados, a respeitar a grandeza do farol e dos feitos conseguidos pelo marinheiro em estátua imortalizado. Talvez por isso, os demais não terão a honra de estátua.

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