Nick Cave & the Bad
Seeds, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=RrxePKps87k
Éramos altivos, incultamente arrogantes:
ao pobre do gordo, vasilha das sobras, a baliza destinada. E nós, os elegantes,
os pujantes na forma física, tratávamos de arranjar o jogo no resto do campo. O
gordo tinha utilidade: abundante nas carnes, ocupava mais espaço na baliza: mais
difícil ficava o golo para o adversário. O gordo, resignado com a disfunção que
não o atormentava, anuía. Era o modo único de participar no jogo.
Hoje, não sabemos a quantos de nós restaria
a incumbência de ir para a baliza. Não sabemos do paradeiro uns dos outros – e muito
menos do gordo. Ninguém sabe se o gordo não fez uma cirurgia para implantação
de banda gástrica e teve sucesso na empreitada, passeando-se garboso e
irreconhecivelmente elegante. E quantos de nós, entretanto capitulando na
preguiça que, segundo alguns compêndios, rima com qualidade de vida (num
embuste rigorosamente alinhado para entreter consciências mal-amanhadas), quantos
de nós tombaram no ardil do peso excessivo e das panças arregaçadas sobre os
quadris? Teriam, todos esses, de ir à baliza. Talvez um congestionamento do
espaço adjacente à baliza acontecesse, e o campo restante ficasse tomado pela
fraca densidade populacional. O jogo já não seria igual.
Ontem ninguém era gordo, a não ser o
gordo de serviço. Escarnecia-se do gordo, porque o gordo não conseguia ter a
destreza dos demais e não aprendia com isso: ao almoço continuava, sôfrego, a
devorar a comida que vinha ao seu prato e ainda fazia olhos ávidos para a
comida que os mais vagarosos iam deixando arrefecer no prato. O gordo ficava
para trás em tudo. Não se parecia importar. Só queria fazer parte da pandilha,
nem que fosse como a aberração eleita pela pandilha. Ia aprendendo o que mais
tarde muitos dos outros tiveram de aprender a contragosto: os custos da
socialização forçada obrigam a engolir, e muito, em seco.
A aresta viva do tempo abate-se sobre
as cicatrizes do corpo. Por falta de paradeiro, não sabemos quantos de nós hoje
são quase gordos como era o gordo. Talvez a fraca memória aplaque as dores das
carnes que ganharam abundância. Os obesos de agora lembram-se de como
escarneciam o gordo da altura? Não tem mal. A amargura mal disfarçada do tempo
que por eles passou (e mal) não dava, sequer, para os convencer a irem à
baliza.
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