14.11.17

Adversativa


Beck, “Dreams” (live on KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=-zhIO2YeBGo    
Podia contar a história do vendedor de camisas, o nómada de feira em feira a vender a mercadoria como se fosse fazenda mestra. Ou não.
Podia ir ao sepulcro perguntar quantas noites tem o dia por diante. Ou não.
Podia saber como o cão vadio conseguiu o naco de carne que traz na boca. Ou não.
Podia verter os remorsos na pia funesta onde fermentam as ladainhas escusadas. Ou não.
Podia perguntar aos estivadores se são os tutores da maré. Ou não.
Podia angariar as viagens demoradas em vez de sonhos frágeis. Ou não.
Podia ir ao teatro em vez de andar pelos cantos da memória sem saber de encruzilhadas. Ou não.
Podia falar em vez de estar em silêncio (ou o contrário, já nem sei). Ou não.
Podia limpar as cicatrizes dos ossos profundos, à espera da madrugada leviana como terapia prescrita. Ou não.
Podia inventariar os proscritos, para saber se pertenço ao escol. Ou não.
Podia fugir dos profetas da angústia. Ou não.
Podia parar de ver os olhos vazios das impassíveis sereias que descem das serranias aos vales mais profundos. Ou não.
Podia preferir o ruído em vez do silêncio (ou o contrário, já nem sei). Ou não.
Podia esboçar epitáfios sob encomenda, não mandassem dizer que são eternas as almas. Ou não.
Podia tirar a água com as mãos e deixar à mostra o rosto límpido, sem rugas, o rosto de uma simplicidade ímpar. Ou não.
Podia trazer à janela escondida os termos solenes de um contrato sem nome. Ou não.
Podia deixar ao mar a escolha do tempo. Ou não.
Podia desaprender de dizer adeus, por medo de ser a última vez. Ou não.
Podia desaprovar o medo da morte. Ou não.
Podia calçar o chão com as palavras adstringentes, compondo estrofes ousadas como quem vai ao mar sem saber nadar. Ou não.
Podia encomendar as mágoas ao sacerdote sombrio da diálise dos sentidos. Ou não.
Podia qualquer coisa que viesse a preceito. Ou não.
Ou não.

Sem comentários: