Beck, “Dreams” (live on
KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=-zhIO2YeBGo
Podia contar a história do vendedor de
camisas, o nómada de feira em feira a vender a mercadoria como se fosse fazenda
mestra. Ou não.
Podia ir ao sepulcro perguntar quantas
noites tem o dia por diante. Ou não.
Podia saber como o cão vadio conseguiu
o naco de carne que traz na boca. Ou não.
Podia verter os remorsos na pia funesta
onde fermentam as ladainhas escusadas. Ou não.
Podia perguntar aos estivadores se são os
tutores da maré. Ou não.
Podia angariar as viagens demoradas em
vez de sonhos frágeis. Ou não.
Podia ir ao teatro em vez de andar
pelos cantos da memória sem saber de encruzilhadas. Ou não.
Podia falar em vez de estar em silêncio
(ou o contrário, já nem sei). Ou não.
Podia limpar as cicatrizes dos ossos
profundos, à espera da madrugada leviana como terapia prescrita. Ou não.
Podia inventariar os proscritos, para
saber se pertenço ao escol. Ou não.
Podia fugir dos profetas da angústia. Ou
não.
Podia parar de ver os olhos vazios das
impassíveis sereias que descem das serranias aos vales mais profundos. Ou não.
Podia preferir o ruído em vez do silêncio
(ou o contrário, já nem sei). Ou não.
Podia esboçar epitáfios sob encomenda,
não mandassem dizer que são eternas as almas. Ou não.
Podia tirar a água com as mãos e deixar
à mostra o rosto límpido, sem rugas, o rosto de uma simplicidade ímpar. Ou não.
Podia trazer à janela escondida os
termos solenes de um contrato sem nome. Ou não.
Podia deixar ao mar a escolha do tempo.
Ou não.
Podia desaprender de dizer adeus, por
medo de ser a última vez. Ou não.
Podia desaprovar o medo da morte. Ou não.
Podia calçar o chão com as palavras
adstringentes, compondo estrofes ousadas como quem vai ao mar sem saber nadar. Ou
não.
Podia encomendar as mágoas ao sacerdote
sombrio da diálise dos sentidos. Ou não.
Podia qualquer coisa que viesse a
preceito. Ou não.
Ou não.
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