9.11.17

As árvores eram de plástico e o sol não aquecia

Gorillaz, “On Melancholy Hill” (Live on AOL Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=KSxYRlsBNKU    
Do lugar do sol emasculado: todavia, as pessoas já começavam a ter lembrança remota da chuva. Era assim este lugar: um lugar de meias-tintas, o paradoxal lugar contudo habitado por gente irascível, contundente, garbosa, ufana do lugar que era sua hospedagem.
Algo não rimava com a observação (mas tinha de ser um observador exterior a tê-la, não contaminado pela parcialidade dos residentes). O lugar parecia ter adormecido numa curva do tempo. O tempo parecia uma eternidade, impassível à convocatória de gente ansiosa por o ver desfilar. Dizia-se que havia uma praceta onde o tempo andava da frente para trás; saudosos do pretérito e diligentes apóstolos do imorredoiro presente eram visitas frequentas à praceta. As propriedades quiméricas da praceta não eram confirmadas. Mas ai de quem ousasse desafiar os residentes com dúvidas metódicas sobre a plausibilidade dos efeitos medicinais atribuídos à praceta. As pessoas ficavam ofendidas. Deixavam de falar, ato contínuo. Porque um mito, para assim ser considerado, não admite contestação. Que interessava se a contraprova desmentia o mito? Se assim fosse, deixaria de poder usar as insígnias de mito – e não interessa desfazer a estultícia de um mito, pois as pessoas precisam de crenças.
Por isso, neste lugar não eram admitidas árvores de carne e osso. Todas as árvores eram de plástico. Um autóctone explicou, a certa altura, que ninguém fica com a alma despedaçada quando uma árvore perece, e ainda por cima, perece de pé. É um fim duplamente indigente: árvore nenhuma merece a morte, depois de tantos (e não reconhecidos) serviços prestados; e as mortes são dignas quando são num leito, não são dignas quando se morre em pé, iludindo quem passa que, a menos que seja perito em botânica, não sabe que a morte se ocupou da árvore e a homenagem exigível fica proscrita.
Um forasteiro desafiou o orgulho do lugar quando perguntou, a meio de dois copos de vinho, numa esplanada centrípeta, se este não era um lugar de puro fingimento. De gente plástica, como as árvores. O interlocutor, arreigado defensor da superioridade do lugar, com as emoções desbragadas pelo efeito do vinho a caminho do excesso, quis defender a honra do lugar e, à maneira antiga, desafiou o forasteiro para um duelo de espadas. O forasteiro percebeu, depois: o nativo era exímio praticante de esgrima.

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