The Pogues, “Rainy Night in
Soho”, in https://www.youtube.com/watch?v=yPA_XuxUx3M
Nuvens. Densamente povoadas. Ameaçam
chuva. A chuva necessária. Mas o dia estende-se pelo dia fora e das nuvens,
escuramente medonhas, dir-se-ia tratar-se de gente com coração empedernido que
resiste a verter lágrimas. A chuva adia-se. Enganaram-se, os meteorologistas. A
chuva não aterrou à hora esperada. Está atrasada. E é tão precisa que cada
minuto de atraso é como um punhal fundo a ensanguentar a terra lívida com as
sombras da sua aridez.
Chuva tardia. Até o arcebispo
encomendou orações em favor da chuva. As parangonas enchem-se de estiagem. Os cientistas
prospetivos adivinham que o deserto norte-africano está a caminho de estender
os tentáculos à península ibérica, à conta das anomalias do clima que prolongam
o verão até às vésperas do inverno. O outono é uma pálida imagem – ou apenas
uma verberação das memórias, quando no outono havia chuvas copiosas, ventos
iracundos e enchentes do mar, que irrompia sobre os paredões empurrado pelo
vento de sudeste; das memórias que foram furtadas pela chuva arredia. O outono é
apenas um arremedo de outono. Com sol excessivo, temperaturas de veraneio, chuva
quase esquecida e castanhas que não apetece provar.
Quando a chuva tem lugar, a
deslembrança serve de ignição para o delíquio das almas. As pessoas desabituaram-se
da chuva. Escorregam no chão. Não estão protegidas com abrigos necessários. Já
não se lembram onde arrumaram os guarda-chuvas. Mas, ao mesmo tempo, não se
incomodam quando a chuva escorrega pelos seus corpos. As plantas embriagam-se
com a plenitude das gotas de chuva que conseguem beber. Algumas morrerão de
soberba: sôfregas, engasgam-se com a água excessiva a que deitaram boca. Entende-se.
Desconfiadas, não sabiam quando voltariam a matar a sede. Mataram a sede com
tanta voragem que se mataram a si mesmas. No imodesto impropério contra as
importunações, o juízo adultera-se. A culpa é da chuva tardia e da tenda mediática
montada sobre a estiagem sem precedentes. Já há até quem adivinhe o
racionamento de água para consumo humano. E banhos com menos assiduidade – com
a paga em odores nauseabundos em espaços fechados, o nirvana entreaberto aos surrentos.
A chuva é sempre tardia. Quer em
quarenta da chuva, quer quando choveu ontem. Pois da água vertida dos céus
dependemos. É o manancial inteiro, esteio da identidade. Como é possível ainda
dizer-se que está bom tempo quando o dia é soalheiro?
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