Máquina del Amor: “Bonitinha
Mais Mocada”, in https://www.youtube.com/watch?v=hk6hfm_TvxI
Excruciante método para colher os
frutos da sobrevivência – da gesta não sobressaltada por equinócios desviados,
com as lamas fétidas de ornamento à volta do pescoço: investe-se a
personalidade toda dentro de um papel, mesmo sabendo que o papel é a adulteração
da personalidade na sua pureza. A páginas tantas, já não tem importância a
pureza – da personalidade, do que quer que seja, desligada da corrente a fábula
da inocência. Até deixará de ter remédio a dúvida existencial sobre o que é a
personalidade, menos se sabendo se ela quadra com uma pureza que lhe seja por
isso inata, ou se passou a ser matéria viva de outra pureza por ação da sua prévia
transfiguração.
Só há uma certeza: deixou de haver
certezas. Concorrem nas balaustradas firmes, onde as mãos se amparam em refúgio
do precipício, as imagens insubmissas. Crê-se que procedem da incomparável
rebeldia que se entreolha no exterior dos limites, para os dorsos carregados de
infâmia, neles sobrepujada por mediação de apóstatas de si mesmos que se
desfazem das apoplexias em cima dos dorsos outros, e percebe-se que o lugar próprio
se deslocou para outro centrípeto. É um nomadismo ao início irritante: as
pessoas habituam-se ao sedentarismo, não pelo sedentarismo, em si desprovido de
méritos, mas porque a complexa roda dentada onde todos se articulam a tal
obrigou. Depressa deixa de ser irritante, o nomadismo. Temos de procurar
lugares diferentes de onde se consiga ver as coisas por outra lente.
Diz-se que nós somos a nossa circunstância.
Mas a nossa circunstância transcende o lugar que ocupamos, é ditada pela confluência
de ações que nos são exteriores. São variáveis que não dominamos. Descontando o
exagero da metáfora, é matar ou morrer: em semântica própria do assunto, é ser
ultrapassado pelas circunstâncias em nome de uma pureza invisível, ou
transfigurar o eu para não sermos meros figurantes sem um módico de influência.
Que fique bem entendido: o módico de influência não tem a ousadia de nos
colocar no papel de atores principais, a comandar as jogadas que extravasam em ingerências
nos deslimites de nós; cuida-se apenas de moderar as cadeias de acontecimentos
que as circunstâncias exteriores podem causar.
Temos de desempenhar um papel. E por
dentro desse papel, podemos deixar ser o eu a que estávamos habituados. Aprendemos
a plasticidade do eu. Não se trata de ardilosamente congeminar um eu coberto
por fingimento. Com a complexa roda dentada em funcionamento, a perder de vista
seus mecanismos, já não se certifica o que é fingimento e constitui pureza de
personalidade. Um profeta das coisas na sua pureza inatacável protestava que não
podemos curvar a espinha dorsal, sob pena de jamais a conseguirmos endireitar. Pode
ser que sim. O sentido prático da vida, esculpido pelas indomáveis circunstâncias
a nós exteriores, contrapõe que se formos passivos neste teatro podemos acabar
com a espinha dorsal também curvada.
O fingimento deixa de o ser quando o
restolho que arde na fogueira ensina que somos todos atores, e em papeis variáveis,
na exata proporção das exigências que sobem ao mapa. Acabamos todos por ser
atores.
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