Tricky ft. Francesca
Belmonte, “Nothing’s Changed” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xSpmnjbomx0
O farol tutelava a imensidão do mar que
vinha desaguar à costa. À noite, da sua luz circundante e com o auxílio do zunido
em dias de nevoeiro, o farol resguardava os navios, que se guiavam pelo feixe
sincopado (mesmo tendo instrumentos de navegação mais avançados; os marinheiros
ainda desconfiavam da tecnologia – não a consideravam imune a anomalias). Na
retaguarda do farol encontrava-se uma estátua. A estátua de um marinheiro de
antiga cepa – o marinheiro intrépido, que convencera outros como ele a pescar
em longínquas águas gélidas, já perto do ártico, e distribuíra fortuna pelos
seus e demais conterrâneos.
Um dedo indicador do marinheiro apontava
na direção do farol. Não era por acaso. Quando a estátua foi encomendada, o
edil tivera a ideia de a colocar num pedestal sob a jurisdição do farol, com ordem
precisa de que um dedo indicador do marinheiro estaria na direção do farol. Uns
acharam que o marinheiro a prestar vassalagem ao farol – a todos os faróis que
foram candeias para o seu navio enquanto esteve no ativo. Outros consideram um
despautério e acusaram o edil de faltar ao respeito à memória do marinheiro, de
todos os marinheiros que encontraram sepultura nos mares profundos. Protestavam
contra a desonra de esculpir uma estátua de alguém que viveu do mar e nele morreu,
com o dedo espetado para o farol, como se o farol se sentasse no banco dos réus
pelo decesso da tripulação do navio comandado pelo marinheiro.
A polémica perdurou e tornou-se política,
violenta. O edil, em vez de deixar o banzé para os críticos e para os contracríticos,
não se calou. De cada vez que falava, entontecia-se com argumentos díspares –
ora defendia a obra; ora acusava o escultor, como se ele não tivesse entendido
as instruções; ora tecia um argumentário ininteligível. Indiferentes à vozearia
estéril, o farol e o marinheiro mantinham diálogo perene, que nem na noite
adormecia. Eram surdos, a não ser para as palavras que trocavam entre si: o
marinheiro estatuado e o farol falavam a linguagem dos homens do mar. Só eles mantinham
circuito direto para o diálogo.
Talvez por isso, os demais, entretidos
em querelas espúrias, fossem forcados em arena deserta. Se ao menos soubessem
ser intérpretes dos augúrios do mar, manter-se-iam calados, a respeitar a
grandeza do farol e dos feitos conseguidos pelo marinheiro em estátua
imortalizado. Talvez por isso, os demais não terão a honra de estátua.
Sem comentários:
Enviar um comentário