Ermo, “Correspondência”, in
https://www.youtube.com/watch?v=3TCOb8UPZ7M
O homem vigiava a velhice de perto. Não
se conciliava com as rugas, com as artroses que freavam os joelhos, com a vista
embaciada, com o desorgulho da impotência. Estava mais ácido. Olhava
demoradamente as mãos, a pele encardida – a pele transfigurada, enegrecida. A
impaciência era diária. Por dentro dele bolçava uma angústia imorredoira. Já
não sabia o que era rir. Já não se lembrava de ouvir os outros e ser tomado
pelo deleite.
Convenceu-se que tinha de encontrar
culpados no processo. Não podia ser apenas a decadência a tomar conta de si – o
corpo a fraquejar, a memória hesitante, o pensamento hieroglífico, a imerecida
senescência. Tinha de haver outras causas, outros responsáveis pelo azedume
incorrigível. E ele notava: que ao notar o azedume, crescia desde um forno
insidioso ainda mais azedume, uma angústia inderrotável, cíclica. Não podia ser
o medo da morte. Era um homem religioso e sabia dos dogmas da religião. Um dos
mandamentos era a efemeridade da vida, da vida tal como a conhecemos enquanto
somos corpo e alma. Mas algo estava a dissidir das equações matematicamente
certas, o émulo da perfeição que só está ao alcance das divindades. Nunca
pusera em causa (o seu) deus. Mesmo nos sobressaltos existenciais que deixaram
cicatrizes avivadas, sem reparação.
Desta vez era diferente. Não estava
convencido que a morte espreitava a cada instante. Era insuportável, a ideia da
morte. Era insuportável deitar-se sem ter a certeza da manhã seguinte. Era
insuportável acordar sem saber se aquela era a manhã terminal. Acusava deus.
Afinal, a morte era uma angústia sufocante, o parapeito da fragilidade, o
bestiário da indiferença da vida de cada um. Era uma invenção de deus, se deus
estava na origem de tudo.
Não podia acreditar que somos a
sofismação da grandeza das divindades, que se alimentam da nossa exiguidade e
tomam proporções bíblicas. Se fosse dantes, ia a uma igreja e ajoelhava-se no
altar para falar com deus. Agora recusava-se. Não queria mais conversas com
deus. A imperfeição não podia ser castigo divino. Não podia tolerar que os
pobres homens fossem reduzidos a uma dimensão necessariamente punitiva sob a vigilância
da metafísica. E perguntava-se se a morte não era castigo suficiente. Perguntaria
a deus, no resguardo de uma igreja, caso não tivesse deixado de o reconhecer.
Não queria manter acesa a centelha de uma glória que aproveitava a outrem, uma
centelha onde quem a acendia acabava por se incensar. Se deus era isto, deus
não era justo. E sempre aprendera que a bondade e a justiça eram imanentes a
deus. Se deus era isto, deus não era deus As dores excruciantes, a tomarem
conta do corpo todo e do pensamento sobrante, desmentiam a bondade e
equanimidade de deus. Já não se importava. Tinha por certo que o demónio da
morte não demoraria a fazer a sua visitação sem remédio. Sentia-se abandonado
por deus. Imerso nesta orfandade, tudo deixara de importar.
Até que um velho amigo, ombro repetido
para o deslaçar das suas amarguras, confiou um segredo: se deus deixara de importar,
ele não tinha de lhe prestar contas. A partir de então, a melancolia
irrecusável foi sepultada e o velho homem caucionou a velhice sem ser um dano
irreparável. Dantes é que fora o banquete das ilusões. Quando foi o tempo
devido para as abraçar. Agora já não fazia sentido: o mundo era por demais
conhecido, como se já não houvesse nada mais a trazer ao conhecimento. Deus perdera
o prazo de validade.
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