20.11.17

O banquete das ilusões

Ermo, “Correspondência”, in https://www.youtube.com/watch?v=3TCOb8UPZ7M    
O homem vigiava a velhice de perto. Não se conciliava com as rugas, com as artroses que freavam os joelhos, com a vista embaciada, com o desorgulho da impotência. Estava mais ácido. Olhava demoradamente as mãos, a pele encardida – a pele transfigurada, enegrecida. A impaciência era diária. Por dentro dele bolçava uma angústia imorredoira. Já não sabia o que era rir. Já não se lembrava de ouvir os outros e ser tomado pelo deleite.
Convenceu-se que tinha de encontrar culpados no processo. Não podia ser apenas a decadência a tomar conta de si – o corpo a fraquejar, a memória hesitante, o pensamento hieroglífico, a imerecida senescência. Tinha de haver outras causas, outros responsáveis pelo azedume incorrigível. E ele notava: que ao notar o azedume, crescia desde um forno insidioso ainda mais azedume, uma angústia inderrotável, cíclica. Não podia ser o medo da morte. Era um homem religioso e sabia dos dogmas da religião. Um dos mandamentos era a efemeridade da vida, da vida tal como a conhecemos enquanto somos corpo e alma. Mas algo estava a dissidir das equações matematicamente certas, o émulo da perfeição que só está ao alcance das divindades. Nunca pusera em causa (o seu) deus. Mesmo nos sobressaltos existenciais que deixaram cicatrizes avivadas, sem reparação.
Desta vez era diferente. Não estava convencido que a morte espreitava a cada instante. Era insuportável, a ideia da morte. Era insuportável deitar-se sem ter a certeza da manhã seguinte. Era insuportável acordar sem saber se aquela era a manhã terminal. Acusava deus. Afinal, a morte era uma angústia sufocante, o parapeito da fragilidade, o bestiário da indiferença da vida de cada um. Era uma invenção de deus, se deus estava na origem de tudo.
Não podia acreditar que somos a sofismação da grandeza das divindades, que se alimentam da nossa exiguidade e tomam proporções bíblicas. Se fosse dantes, ia a uma igreja e ajoelhava-se no altar para falar com deus. Agora recusava-se. Não queria mais conversas com deus. A imperfeição não podia ser castigo divino. Não podia tolerar que os pobres homens fossem reduzidos a uma dimensão necessariamente punitiva sob a vigilância da metafísica. E perguntava-se se a morte não era castigo suficiente. Perguntaria a deus, no resguardo de uma igreja, caso não tivesse deixado de o reconhecer. Não queria manter acesa a centelha de uma glória que aproveitava a outrem, uma centelha onde quem a acendia acabava por se incensar. Se deus era isto, deus não era justo. E sempre aprendera que a bondade e a justiça eram imanentes a deus. Se deus era isto, deus não era deus As dores excruciantes, a tomarem conta do corpo todo e do pensamento sobrante, desmentiam a bondade e equanimidade de deus. Já não se importava. Tinha por certo que o demónio da morte não demoraria a fazer a sua visitação sem remédio. Sentia-se abandonado por deus. Imerso nesta orfandade, tudo deixara de importar.
Até que um velho amigo, ombro repetido para o deslaçar das suas amarguras, confiou um segredo: se deus deixara de importar, ele não tinha de lhe prestar contas. A partir de então, a melancolia irrecusável foi sepultada e o velho homem caucionou a velhice sem ser um dano irreparável. Dantes é que fora o banquete das ilusões. Quando foi o tempo devido para as abraçar. Agora já não fazia sentido: o mundo era por demais conhecido, como se já não houvesse nada mais a trazer ao conhecimento. Deus perdera o prazo de validade.

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