22.1.18

Cascadeur

Daniele Luppi & Parquet Courts, “Flush”, in https://www.youtube.com/watch?v=NYGhHLYwx4I    
Era sempre no fio da navalha. No limiar da apoplexia. Batimentos no red line. Sempre a desfiar os desafios, com a imoderação dos estouvados. Não era por mero garbo. O cascadeur da vida inteira odiava a letargia. Ficava impaciente se suspeitasse que o dia era igual ao da véspera. Que não lhe viessem com planos milimetricamente cingidos. Apanhava os papeis e desfazia-os a uma resma condenada ao lixo.
Não era, em sentido literal, um cascadeur. Mas era assim que se sentia – apesar de não pilotar automóveis extraídos à sucata para lá voltarem depois de uma performance tresloucada. Continuava a não transitar pelo lado tranquilo das avenidas. Procurava a ebulição constante. Sabia que só o sangue fervente tem predicamentos para converter a existência num santuário salgado. Por isso, que ninguém lhe dissesse para espaventar os demónios que pareciam sondá-lo, tanto o frenesim em que se debatia. Ficava irascível perante tais demandas. Bolçava reações intempestivas e devolvia à procedência, em resposta firme e recusativa, a demanda.
Sabia que havia choques frontais, curvas ardilosas, precipícios sem pré-aviso, congeminações inesperadas que se atravessam em forma de contratempo. Só não sabia quando podia contar com as adversidades. Não era ingénuo a ponto de fingir que tudo é do domínio da perfeição. Em tais preparos, preferia sentir o punhal afiado a dois centímetros da jugular e garantir que, no que ao domínio da sua vontade dissesse respeito, mantê-lo-ia a essa distância de segurança. Não recusava uma boa demanda num lugar desconhecido. À partida, não sabia o que esperar. Nem isso interessava. Tinha a garantia do desconhecido como caução que tornava obsoleta a letargia pedante. Intrépido, nem pensava duas vezes. Trazia no corpo as provas perenes da demencial (aos olhos dos outros) intrepidez. Cicatrizes, pedaços de metal em ossos fissurados, a alma remendada. Muitas noites de insónia, a curar as feridas abertas pela avassaladora coragem.
Não tinha um instante de arrependimento. E nem a madurez, dentro de pouco tempo a converter-se em idosa etapa, embaciava a ousadia. No meio de um imenso deserto de existenciais dúvidas, só tinha uma certeza (por mais que custasse a reconhecê-la como tal, por metódicos imperativos): a demencial coragem era a resposta à recusa do envelhecimento. Pois temia que a acomodação, parente visível da idade que avançava, consigo levasse a vida, sem remédio. Por isso, sim, orgulhosamente cascadeur – patrono da espetacular maneira de viver, santuário de prazeres, garantia de deleite para os outros. Cascadeur, com o diabo no corpo e uma vela imensamente incandescente a atear a alma.

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