dEUS, “Suds & Soda”, in
https://www.youtube.com/watch?v=h3r7Oo0Fs-8
O doutor não usava gravatas – e todos
os senhores doutores eram distintos homens que não iam ao ofício sem trajarem gravata
a condizer com a indumentária. As pessoas em redor ficavam atónitas com o
desassombro do doutor que não usava gravatas. Algumas, perplexas, ao verem como
o doutor que não usava gravatas se fazia passear nos corredores na sua impante
esfinge. Discutiam, as vozes que não tinham mais nada para fazer, se era
provocação ou apenas por vocação. Discutiam se o doutor não queria usar
gravatas por se saber corpo estranho num escol a que pertencia, mas que não
fazia questão de ostentar a pertença; ou se era simplesmente por não apreciar o
adereço na indumentária.
Um dia, estava o verão no seu pináculo
e as pessoas amaldiçoavam o calor, o doutor que não usava gravatas não são
apareceu sem a gravata da tradição (o que já não era motivo de espanto), como, mostrando
incomodar-se com a canícula e aliviando-se num espírito pragmático, se fez
apresentar na companhia de arejadas sandálias. Toda a gente estava em polvorosa.
Naquele lugar tão distinto, onde as tradições eram lei de bronze, nem sequer
aos mais novos era admitido mostrar os pés semidesnudados.
Ao contrário dos seus pares, tudo
indicava que o doutor que não usava gravatas não fazia a higiene corporal numa
base diária: os cabelos desgrenhados e untuosos; a barba desarranjada e caótica,
com pelos abundantes num sector do rosto em contraste com a sua ausência de
outro quadrante facial; as roupas desleixadas, deixando à mostra alguma
sujidade; as unhas longas (e não se fazia constar que fosse guitarrista), não
disfarçando algum bedum nas extremidades. Os que lhe eram mais próximos (e proximidade
apenas significa contiguidade de espaços, que o doutor que não usava gravatas
era um eremita, solitário como são os eremitas) juravam que havia dias em que a
um metro de distância se notava um odor – e aqui faziam uma pausa na descrição,
à procura da palavra certa, em estando os narradores tomados pela useira
diplomacia do local – desagradável. Um dia, perante a audiência dos mais
jovens, enquanto perorava através de um gongórico discurso e o olhar vagueava,
perdido, nas abóbadas que compunham o teto da sala, descalçou-se e acomodou um
dedo da mão a um dedo do pé, talvez acometido por um prurido. Os que estavam
nas filas da frente repararam na meia fartamente rota que permitia o contacto
de pele com pele dos dedos de membros diferentes.
O doutor que não usava gravatas era uma ilha não
frequentada. Ignorado pelos pares, pelos outros funcionários e até pelos mais
novos, que não o respeitavam devido à risível figura, o doutor que não usava
gravatas também não usava outros pergaminhos do lugar em apreço: a intriga e a maledicência;
a hipocrisia; a ingratidão; a sobranceria. Temia que assim que enfiasse uma
gravata à volta do pescoço todos aqueles maus pergaminhos assentar-lhe-iam à
medida do adereço. Ou então, era só um pretexto para afirmar a sua não
convencional figura.
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