Daniele Luppi & Parquet
Courts, “Flush”, in https://www.youtube.com/watch?v=NYGhHLYwx4I
Era sempre no fio da navalha. No
limiar da apoplexia. Batimentos no red
line. Sempre a desfiar os desafios, com a imoderação dos estouvados. Não
era por mero garbo. O cascadeur da
vida inteira odiava a letargia. Ficava impaciente se suspeitasse que o dia era
igual ao da véspera. Que não lhe viessem com planos milimetricamente cingidos. Apanhava
os papeis e desfazia-os a uma resma condenada ao lixo.
Não era, em sentido literal, um cascadeur. Mas era assim que se sentia –
apesar de não pilotar automóveis extraídos à sucata para lá voltarem depois de
uma performance tresloucada. Continuava a não transitar pelo lado tranquilo das
avenidas. Procurava a ebulição constante. Sabia que só o sangue fervente tem
predicamentos para converter a existência num santuário salgado. Por isso, que
ninguém lhe dissesse para espaventar os demónios que pareciam sondá-lo, tanto o
frenesim em que se debatia. Ficava irascível perante tais demandas. Bolçava
reações intempestivas e devolvia à procedência, em resposta firme e recusativa,
a demanda.
Sabia que havia choques frontais,
curvas ardilosas, precipícios sem pré-aviso, congeminações inesperadas que se
atravessam em forma de contratempo. Só não sabia quando podia contar com as
adversidades. Não era ingénuo a ponto de fingir que tudo é do domínio da
perfeição. Em tais preparos, preferia sentir o punhal afiado a dois centímetros
da jugular e garantir que, no que ao domínio da sua vontade dissesse respeito, mantê-lo-ia
a essa distância de segurança. Não recusava uma boa demanda num lugar
desconhecido. À partida, não sabia o que esperar. Nem isso interessava. Tinha a
garantia do desconhecido como caução que tornava obsoleta a letargia pedante. Intrépido,
nem pensava duas vezes. Trazia no corpo as provas perenes da demencial (aos
olhos dos outros) intrepidez. Cicatrizes, pedaços de metal em ossos fissurados,
a alma remendada. Muitas noites de insónia, a curar as feridas abertas pela
avassaladora coragem.
Não tinha um instante de
arrependimento. E nem a madurez, dentro de pouco tempo a converter-se em idosa
etapa, embaciava a ousadia. No meio de um imenso deserto de existenciais dúvidas,
só tinha uma certeza (por mais que custasse a reconhecê-la como tal, por metódicos
imperativos): a demencial coragem era a resposta à recusa do envelhecimento. Pois
temia que a acomodação, parente visível da idade que avançava, consigo levasse
a vida, sem remédio. Por isso, sim, orgulhosamente cascadeur – patrono da espetacular maneira de viver, santuário de
prazeres, garantia de deleite para os outros. Cascadeur, com o diabo no corpo e uma vela imensamente
incandescente a atear a alma.
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