25.1.18

O paço dos embuçados

Eels, “Flyswatter” (live at Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=jyFP6HbnGao    
O paço está deserto. As pedras gastas em que assenta o chão só conhecem a presença da humidade noturna. Ao longe, numa viela sobranceira ao paço, um vulto furtivo parece esconder-se. A julgar pelo errático movimento da sombra, dir-se-ia ter uma coisa importante a esconder dos outros olhos. Mas não havia nenhum olhar disponível para atormentar o vulto.
Dentro das casas, as pessoas procuram refúgio contra a noite que açambarca as almas. Conhecem-se uns exemplos quantos de almas trespassadas pela vulgata da noite. Quando queriam regressar à vontade que fora sua, já não foram a tempo. A noite – os seus apetites, os seus fantasmas – tinha roubado o conteúdo dessas almas. Por isso, as ruas ficam quase desertas quando a noite se instala. Faz-se constar que as exceções são os embuçados que se juntam no paço. A páginas tantas, as pessoas concordaram sobre a nova toponímia do local: agora o paço é o paço dos embuçados (para grande tristeza do arcebispo que dantes emprestara o nome ao paço, provavelmente debatendo-se no túmulo contra a expropriação da toponímia).
Os embuçados são como os vultos perenes que não transigem no vestuário negro. Diz-se que protege as suas silhuetas, fica mais difícil descobrir as suas identidades. Ou podia ser por outro motivo: os embuçados, gente terra-a-terra que dispensa a ingenuidade das superstições populares, construíram um cenário de que faz parte a indumentária negra como ingrediente do enigma sobre quem são. Os rumores galopam na inverosimilhança. Dos embuçados se diz serem uma fação da maçonaria, ou apenas um grupelho de adolescentes estroinas, ou gatunos em licença sabática, ou amazonas que se insurgem contra a dominação masculina, ou um grupo de violadores que decreta no paço as suas próximas vítimas, ou um punhado de gente bem-posta que esconde a preferência pela anarquia. O tempo rasante não caucionou resposta categórica. Os rumores continuam bem nutridos e com uma verve invejável.
A condizer com os rumores e a sua demoníaca feição, as pessoas narram as piores crueldades imputadas aos embuçados que se juntam no paço dos embuçados. Plágios de obras emblemáticas (como se não houvesse memória e a autoria fosse refeita), estupros, roubos avassaladores, o caos espalhado na cidade à medida que os embuçados percorrem estrepitosamente as suas ruas, paredes pintadas com medonhas profecias sobre o fim do mundo com data certa ou sobre uma invasão de assassinos extraterrestres, ou paredes pintadas desmentindo a existência da poesia. E os rumores continuam a trepar às costas do inverosímil: não há provas das transgressões, nem vítimas registando queixa em esquadras da polícia, nem o mundo acabou na data prevista, nem se confirmou a visitação de criaturas extraterrestres, e a poesia continua a aquecer as almas.
Não havia nada a temer: era só um teatro itinerante.

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