Eels, “Flyswatter” (live at
Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=jyFP6HbnGao
O paço está deserto. As pedras
gastas em que assenta o chão só conhecem a presença da humidade noturna. Ao longe,
numa viela sobranceira ao paço, um vulto furtivo parece esconder-se. A julgar
pelo errático movimento da sombra, dir-se-ia ter uma coisa importante a
esconder dos outros olhos. Mas não havia nenhum olhar disponível para
atormentar o vulto.
Dentro das casas, as pessoas procuram
refúgio contra a noite que açambarca as almas. Conhecem-se uns exemplos quantos
de almas trespassadas pela vulgata da noite. Quando queriam regressar à vontade
que fora sua, já não foram a tempo. A noite – os seus apetites, os seus
fantasmas – tinha roubado o conteúdo dessas almas. Por isso, as ruas ficam
quase desertas quando a noite se instala. Faz-se constar que as exceções são os
embuçados que se juntam no paço. A páginas tantas, as pessoas concordaram sobre
a nova toponímia do local: agora o paço é o paço dos embuçados (para grande
tristeza do arcebispo que dantes emprestara o nome ao paço, provavelmente
debatendo-se no túmulo contra a expropriação da toponímia).
Os embuçados são como os vultos
perenes que não transigem no vestuário negro. Diz-se que protege as suas
silhuetas, fica mais difícil descobrir as suas identidades. Ou podia ser por
outro motivo: os embuçados, gente terra-a-terra que dispensa a ingenuidade das
superstições populares, construíram um cenário de que faz parte a indumentária
negra como ingrediente do enigma sobre quem são. Os rumores galopam na inverosimilhança.
Dos embuçados se diz serem uma fação da maçonaria, ou apenas um grupelho de
adolescentes estroinas, ou gatunos em licença sabática, ou amazonas que se
insurgem contra a dominação masculina, ou um grupo de violadores que decreta no
paço as suas próximas vítimas, ou um punhado de gente bem-posta que esconde a
preferência pela anarquia. O tempo rasante não caucionou resposta categórica. Os
rumores continuam bem nutridos e com uma verve invejável.
A condizer com os rumores e a sua
demoníaca feição, as pessoas narram as piores crueldades imputadas aos embuçados
que se juntam no paço dos embuçados. Plágios de obras emblemáticas (como se não
houvesse memória e a autoria fosse refeita), estupros, roubos avassaladores, o
caos espalhado na cidade à medida que os embuçados percorrem estrepitosamente
as suas ruas, paredes pintadas com medonhas profecias sobre o fim do mundo com
data certa ou sobre uma invasão de assassinos extraterrestres, ou paredes
pintadas desmentindo a existência da poesia. E os rumores continuam a trepar às
costas do inverosímil: não há provas das transgressões, nem vítimas registando
queixa em esquadras da polícia, nem o mundo acabou na data prevista, nem se
confirmou a visitação de criaturas extraterrestres, e a poesia continua a
aquecer as almas.
Não havia nada a temer: era só um
teatro itinerante.
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