U. S. Girls, “Velvet 4 You”,
in https://www.youtube.com/watch?v=8YkIvuGYGqA
Houve um tempo, tinha a mania que
era deus.
(Não lhe dissessem dessa forma;
ato contínuo, corrigia o interlocutor: “eu
sou deus. Eu sei que sou deus.”)
Em seu crédito invocava oráculos,
bilhetes de lotaria sem prémio, frases que as outras pessoas compunham numa
conversa, o pináculo dos desamores (autoproclamava-se santo tutor dos desamados,
sem confirmar rumores de que falava de cátedra). Amanhecia em interiores preces
com o mar como pano de fundo. Sabia para onde iam os aviões que deixavam um
rasto tracejado no céu – e sabia, até, os aviões que o sobrevoavam quando o céu
estava plúmbeo e escondia os aviões. Porfiava o reconhecimento como
conselheiro, procurando sentir, na multidão em redor, quem andava estremunhado por
insanáveis contrariedades.
Dizia não saber a idade.
Desconfiava-se que era para ocultar a intemporalidade de que se diria penhor se
fosse reconhecido o estatuto divino. A condizer, garantia a estultícia do
tempo, a sua fugacidade. Não o viam amesendar. Ninguém sabia a sua morada. Ninguém
lhe dava importância. E ele não se importunava com a injustiça contumaz. Existia
para o bem-estar dos demais. Estava preparado para que se servissem dele assim
que fosse preciso. Tinha muito tempo livre. Matava-o em longas digressões pelas
ruas da cidade, ou pelos contrafortes da província. Queria sentir o pulsar das
pessoas. Do fundo do dia, exibia um leve sorriso, perene. Era cortês quando os
outros lhe dirigiam a palavra. Mesmo quando dele se afastavam ao começar a récita
que soava a esotérica lengalenga. Despedia-se com o mesmo sorriso franco das
pessoas que se iam embora discretamente, mostrando alguma condescendência, dos
outros que escarneciam da sua suposta deificação e dos que reagiam
impetuosamente e o insultavam, não admitindo que os pergaminhos divinos fossem
sua titularidade.
Um dia, acordou em Istambul. Não sabia
como tinha ido parar a Istambul. O som dionisíaco dos minaretes no chamamento
para as rezas diárias era uma panaceia para a perdição que sentia – perdição,
no sentido de estar num lugar ermo e de não saber como lá havia chegado. Ninguém
falava o seu idioma. E ele só falava o seu idioma. Quando tentou convencer uns rapazes
de que era deus, a cáfila sovou-o ao mesmo tempo que dirigia impropérios
entaramelados com a exclamação “heresia!”.
Acordou, esmurrado e despojado de
roupas, no mercado da sua cidade natal. Não sabia como fizera a viagem de
regresso. Só conseguia falar o idioma turco. Nesse dia, convenceu-se que não
era deus. Em reviravolta radical, converteu-se ao hedonismo agnóstico.
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