11.1.18

O turco acidental


U. S. Girls, “Velvet 4 You”, in https://www.youtube.com/watch?v=8YkIvuGYGqA    
Houve um tempo, tinha a mania que era deus.
(Não lhe dissessem dessa forma; ato contínuo, corrigia o interlocutor: “eu sou deus. Eu sei que sou deus.”)
Em seu crédito invocava oráculos, bilhetes de lotaria sem prémio, frases que as outras pessoas compunham numa conversa, o pináculo dos desamores (autoproclamava-se santo tutor dos desamados, sem confirmar rumores de que falava de cátedra). Amanhecia em interiores preces com o mar como pano de fundo. Sabia para onde iam os aviões que deixavam um rasto tracejado no céu – e sabia, até, os aviões que o sobrevoavam quando o céu estava plúmbeo e escondia os aviões. Porfiava o reconhecimento como conselheiro, procurando sentir, na multidão em redor, quem andava estremunhado por insanáveis contrariedades.
Dizia não saber a idade. Desconfiava-se que era para ocultar a intemporalidade de que se diria penhor se fosse reconhecido o estatuto divino. A condizer, garantia a estultícia do tempo, a sua fugacidade. Não o viam amesendar. Ninguém sabia a sua morada. Ninguém lhe dava importância. E ele não se importunava com a injustiça contumaz. Existia para o bem-estar dos demais. Estava preparado para que se servissem dele assim que fosse preciso. Tinha muito tempo livre. Matava-o em longas digressões pelas ruas da cidade, ou pelos contrafortes da província. Queria sentir o pulsar das pessoas. Do fundo do dia, exibia um leve sorriso, perene. Era cortês quando os outros lhe dirigiam a palavra. Mesmo quando dele se afastavam ao começar a récita que soava a esotérica lengalenga. Despedia-se com o mesmo sorriso franco das pessoas que se iam embora discretamente, mostrando alguma condescendência, dos outros que escarneciam da sua suposta deificação e dos que reagiam impetuosamente e o insultavam, não admitindo que os pergaminhos divinos fossem sua titularidade.
Um dia, acordou em Istambul. Não sabia como tinha ido parar a Istambul. O som dionisíaco dos minaretes no chamamento para as rezas diárias era uma panaceia para a perdição que sentia – perdição, no sentido de estar num lugar ermo e de não saber como lá havia chegado. Ninguém falava o seu idioma. E ele só falava o seu idioma. Quando tentou convencer uns rapazes de que era deus, a cáfila sovou-o ao mesmo tempo que dirigia impropérios entaramelados com a exclamação “heresia!”. 
Acordou, esmurrado e despojado de roupas, no mercado da sua cidade natal. Não sabia como fizera a viagem de regresso. Só conseguia falar o idioma turco. Nesse dia, convenceu-se que não era deus. Em reviravolta radical, converteu-se ao hedonismo agnóstico.

Sem comentários: