17.1.18

O cimento barato

Matt Johnson, “Everybody Wants to Go to Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=AQS-U8TdGaU    
O aforro sem critério tem efeitos contraproducentes.
O exemplo do cimento. Promete-se obra não dispendiosa – talvez como ardil para arrebatar a obra que vai a leilão público. Não se declara como vai ser conseguida tanta poupança. O concurso é vencido. O mestre de obras já tinha uma ideia precisa, mas não revelada, de como haveria de obter parcimoniosa construção. Os mandantes ficaram impressionados. A obra ia ser um paradigma para os compêndios da economia da construção. Não ocorreu esquadrinhar os planos do empreiteiro. A verdade manda dizer que nada garantia que obtivessem respostas categóricas. O mais certo (atendendo aos fracos pergaminhos de lisura), era o empreiteiro ocultar informação, na melhor das hipóteses; a pior das hipóteses, era a mentira sem pudor disfarçada de não errónea informação.
A obra começou a ser levantada. Os operários franziam o sobrolho. (Quanto mais não seja, é a retórica conveniente para efeitos da politicamente correta luta de classes.) Os operários têm a consciência limpa, em antítese com os insaciáveis empreiteiros. Eles atestaram o fraco calibre do cimento que começou a preencher as cofragens. Estava descoberto o enigma. E como o empreiteiro tinha derrotado a concorrência: usava cimento de terceira categoria. Sabedores da poda, os operários tinham motivos para o sobrolho franzido. Aquele era um cimento enfezado. A obra estava comprometida. Podia ser que durasse alguns anos antes de as primeiras fendas se notarem. A correr bem. Ou podiam passar-se apenas uns meses e o cimento começar a esfarelar, com a derrocada a ser possível – a correr tudo pelo pior.
Uns operários interpelaram o capataz. Foram selvaticamente ameaçados de despedimento. Continuaram na sua faina, obedientemente seguindo o plano amador. Um deles não suportou o sono embutido pela má consciência. Mesmo não sendo responsável por um futuro incidente, não se conseguia desligar de uma muito indireta cumplicidade que empobrecia o sono. Fez finca-pé junto do capataz e não se demoveu nem com as ainda mais furiosas ameaças do bestunto.
No dia seguinte – ó ironia do destino! – o operário intrépido foi vítima de um acidente de trabalho. A plataforma onde trabalhava cedeu, ainda o cimento não tinha enrijecido. Na cama do hospital, o operário olhava para o gesso que tomara conta das pernas e dos braços. Não sentia dores. Não sabia se era da morfina. Ou da recompensa de saber a sua consciência feita de um cimento ainda mais rijo do que o gesso que o imobilizava. “O tempo vindouro fará do acerto de contas com o empreiteiro” – sussurrou. À procura do sono, deixou cair, talvez em forma de presságio: “oxalá o empreiteiro seja a única vítima do cimento barato.

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