30.1.18

Curta metragem

Ermo, “Vem nadar ao mar que enterra”, in https://www.youtube.com/watch?v=c-NqxQJ4DqA    
Fechei os olhos. Era insuportável a imagem diante dos olhos. De uma violência exasperante. Preferia fechar os olhos. E na sua penumbra, ombrear com outras, idílicas imagens à escolha. Meter os pés em campos cobertos de flores altas, mesmo não sabendo se havia armadilhas sob as flores, mesmo sem saber o epílogo desse campo.
Alguém contrapôs: não adianta fingir que as arrelias não aportam à tua soleira. Não adianta mergulhar no onírico, como se fosse por dentro dos sonhos que encontras o vago reflexo estrelar que compõe um céu em forma de quimera. E sem demora, antes que continuasse a ser espiolhado por exterior julgamento, antes que de fora viesse um intrusivo enxerto de alma imaculada, virei o rosto ao aconselhamento – virei o rosto à disputa. Os olhos mantinham-se fechados; era a minha réplica. Fortemente comprimidos contra as pálpebras, para que nada do que o olhar pudesse traduzir viesse contaminar o pensamento.
O corpo foi levitando para paisagens distantes, paisagens diferentes, numa sucessão de lugares e de corpos e de idiomas em velocidade vertiginosa. Era como se o mundo passasse diante de um degrau à velocidade da luz, mas eu conseguisse reter na ideia a miríade de formas e sons e sabores e pessoas que vinham no aluvião. De repente, tudo se passava por dentro de uma tela onde o tempo paradoxalmente corria com uma sofreguidão singular e se demorava nas arcadas onde podia recolher com as mãos as sementes de ouro – era um lugar onde o tempo corria de feição. Era uma longa metragem metida no espaço de uma curta metragem. Sem ver o meu corpo, sem sentir o meu pesar, apenas como narrador das pessoas outras, dos lugares sucessivamente demandados, na colheita dos odores e das cores que emolduravam os lugares.
Mantinha os olhos fechados. Não admitiam os deleites que fosse de outro modo. A curta metragem insinuava-se no cerne de uma árvore matricial, bebendo da sua seiva funda. O olhar ainda teimosamente fechado não sabia se a imagem excruciante ainda tinha lugar, mal espreitasse nos interstícios da escotilha. A dádiva continuava acesa na exata medida do crepúsculo que se deitara por dentro do olhar. Quando derrotei o medo, já devia ter passado tempo de sobra para o esvanecer da imagem pungente. As cores eram mais nítidas e as palavras que subiam desde a embocadura da manhã viram tingidas por um sentido claro, insolitamente claro. O ar, enfim, era respirável. Já não precisava de dar caça aos intrusos que pretendiam locupletar um pedaço da minha alma.
Afinal, tudo fora uma emboscada. E a minha resposta, um castelo hibernado para dar caução à alma.

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