4.1.18

Tiro ao humor

The Breeders, “Divine Hammer”, in https://www.youtube.com/watch?v=tUiP5eyx3NM    
A voz de papagaio, na frente do avião: “senhoras e senhores passageiros, tomem atenção a esta promoção imbatível: o perfume (nome da marca) a vinte e nove euros e noventa e nove cêntimos. Aproveitem. Aconselho o perfume.” E junta, num leve tom sarcástico, mas indisfarçável: É o que levo de prenda para a minha mulher sempre que ela faz anos”, seguido de gargalhada breve, mas farta, de como quem é o primeiro a rir-se da graçola de sua autoria, tomando as rédeas do riso em cadeia dos que são contaminados pelo ufano estado do indivíduo. Minutos depois, o comissário de bordo toma conta do microfone outra vez, para anunciar nova venda que não é de desaproveitar: “não conseguem encontrar o creme facial a este preço em lado nenhum. Ainda hoje de manhã, quando fui ao (nome do supermercado) comprar pão, vi este creme ao dobro do preço”, ao que se seguiu nova gargalhada em ato de propagação do riso aos demais.
Dir-se-ia, pelo bruaá de gargalhadas: grande parte dos passageiros embarcaram na gargalhada. O comissário de bordo enganou-se na profissão e devia ensaiar o stand-up comedy. E dou comigo atormentado pela aparente falta de sentido de humor que me assaltou – ou então, não terei atribuído crédito às capacidades humorísticas do comissário de bordo. Não vem mal nenhum ao mundo quando a boa disposição é critério cardeal. Também não há contrariedades que se oponham ao humor. Terá, é certo, de preexistir sentido de humor, ou a comunicação entre o remetente e o destinatário não tem seguimento e o humor acaba gorado num pouco mais do que um onanista exercício do putativo humorista, ou num confrangedor instante em que o único que se ri é o humorista fracassado. Também é certo que o humor é reflexo da subjetividade que nele se encerra. Voltando à casa da partida: fiquei sossegado, caso me fosse dado a perceber que o sentido de humor (ou a capacidade para o deter) de mim estaria ausente; o problema estava no mau intérprete e na escassa qualidade do seu sentido de humor (pelo menos pelos meus padrões, certamente questionáveis).
E que assim não fosse: admita-se, por especulativo exercício, que andaria apartado do sentido de humor, porventura mergulhado numa sorumbática existência que me impedisse sequer de esboçar um sorriso ou de reconhecer credenciais de humor a quem o ensaiasse com denodo. Que mal vem ao mundo se alguém se encerra na sua circunspeta maneira de ser? Sobejam duas hipóteses de resposta: ou se trata de alguém que não tem razões para sorrir ao mundo que o rodeia – e mais ninguém tem a ver com assunto; ou trata-se, apenas, de aplicar um critério exigente quando alguém nos tenta invadir com humor de escasso jaez.
No primeiro caso, destrua-se o preconceito: não temos de estar permanentemente de bem com a vida e com o mundo que nos rodeia. Essa embriaguez de otimismo antropológico é uma farsa. O mundo está apinhado de deformidades. No segundo caso, o exigente critério deve ser louvado. O humor, como tudo na vida, deve ser aplaudido quando é merecedor de encómios. Caso contrário, se tudo for humor, até os circenses personagens que confundem o (seu) sentido de humor com o (seu) risível desfile na passerelle do entretenimento alheio, o humor deixa de ser humor, liquefeito pela sua banalização.

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