29.1.18

Os ícones locais (ou do provincianismo das vaidades em desfile)


The Fall, “Hit the North”, in https://www.youtube.com/watch?v=v5zav2yrC7M    
De quatro mil “personalidades”, os respetivos bustos em barro para celebrar a cidade e uma livraria que é um dos seus símbolos. As figuras prestaram-se à encomenda, pois sempre é uma vaidade que faz bem ao ego: o escol é de quatro mil e não é a qualquer um que cabe integrar a lista de notáveis da cidade. Assim como assim, talvez se celebrem quatro mil egos e não uma cidade.
Deixemos os egos em ebulição, que eles merecem demoradas genuflexões. A dicotomia é reveladora: são eles, a nata da cidade, e os demais, que os devemos acrisolar sem rebuço. A manifestação é a tradução de um provincianismo pequenino, tacanhez em dose concentrada. Dir-me-ão: outros lugares também hastearam bandeiras destas, porventura não de forma tão inclusiva como na minha cidade. (A identificação de quatro mil notáveis faz da cidade um lugar onde dois por cento pertencem aos notáveis; fiquei sem perceber se a cidade é pródiga em prodígios – mais uma originalidade reclamada pelos exacerbados que julgam ser esta a melhor de todas as cidades; ou se foi apenas uma manobra inclusiva, para mostrar ao mundo que no campeonato da democratização de notáveis a cidade leva a palma às demais.) E eu contraponho: por manifesta incapacidade de me prover com dons de ubiquidade, são de mim desconhecidos os demais provincianismos. Que não se justifique o nosso provincianismo com o provincianismo dos outros, a menos que queiramos ser arrastados no caudal pútrido do provincianismo.
A entronização dos notáveis tem uma dupla virtude. Por um lado, imagine-se a excitação, o pulsar orgástico, de muitos dos notáveis ao serem convidados para o seu busto ser moldado em barro e imortalizado na galeria dos notáveis. Não se menoscabe o prazer alheio, mesmo quando é um étimo de solução narcísica. Em segundo lugar – e como antítese do anterior – imagino as excruciantes dores dos aspirantes a notáveis que deram conta da sua exclusão do não-assim-tão-reduzido escol. As dores agravam-se na medida de a lista ser populosa (a julgar pelos cânones que elevam um punhado de celebridades ao pináculo de semideuses: o lugar olímpico é muito reservado e de difícil acesso). Os notáveis que o são para si mesmos mas foram omitidos da listagem devem andar por aí em sucessivas rogações de pragas contra os sublimes arquitetos que tiraram a lista de uma cartola qualquer. Pelo caminho, para apaziguarem as tremendas dores em que se consomem, os omitidos devem vociferar todos os dias contra a injustiça que constituiu a sua não inclusão na nata.
Uns e outros são provincianos incuráveis. Ver uma fotografia de conjunto dos notáveis é um programa inteiro de vaidade fátua, com rostos em pose de autocontemplação, outros com o ar blasé de quem se sabe um escol acima dos pares, a sobranceria a respingar da pose encomendada para o escultor.
Para terminar – e para que não sobejem dúvidas que sobre mim se abatam – não aspiro ao reconhecimento público e seria tortuosa mortificação que alguém me soubesse “notável”. Se há bem que me pode cair no regaço, é a continuidade do anonimato. Com a mais profunda honestidade: não desejo o público reconhecimento e não invejo nenhum dos quatro mil rostos modelados pelo ceramista. E se, em remota hipótese académica, não continuasse a ser favorecido pelo doce anonimato, teria o sublime deleite de recusar o convite (caso fosse endereçado) para meu rosto aparecer junto dos outros três mil novecentos e noventa e nove.

Sem comentários: