9.1.18

O crepúsculo-alvorada

Death in Vegas, “Hands Around My Throat”, in https://www.youtube.com/watch?v=8UvQvOFRS9o    
Deve ser da lava por todo o lado, ou da tempestade de cinza que embacia os olhos, ou do assoreamento intelectual que não é rasurável. Deve ser da confusão mental, porventura presságio da decadência que se anuncia. Ou, talvez, não será nada disso: e, por dentro de uma cortina densa, os olhos enovelam-se na sua sapiência para tirarem das várias camadas sobrepostas um módico de beleza, talvez o arquétipo da pureza.
Não que a beleza, ou a pureza, sejam totalitários nenúfares onde repousa o pensamento. A beleza, ou a pureza, são matéria finamente decantada. Quando as mãos procuram nelas assentar, não notam nada. Dir-se-ia: a beleza, e a pureza (que parece ser seu par lógico), são miragens. Assim seja. As miragens, por serem conceptualizadas, existem. Como é dada existência aos sonhos e sabemos que a matéria onírica é um arrufo (por vezes) ou uma doce ilusão (outras vezes) que serve de batuta ao dia sobrante depois do sono onde tais sonhos se alojaram. Um crepúsculo que se funde na alvorada pode ser do domínio das miragens negadas pelos arautos das coisas apenas tangíveis. Mas esses são personagens dispensáveis. Não sabem (estou certo) o poder da poesia e nunca lhes foi dado a saber que no fio delgado da consistência filosófica tudo é merecedor de interrogação, a tudo se credita a hipótese de ser hipótese. Eles dirão, em forma de categórica sentença: o crepúsculo está nos antípodas da aurora; e se alguém alegar, em seu desfavor, que a luz é timorata no crepúsculo como na alvorada, insurgem-se contra a analogia usando a persuasão das lições da cosmologia: a origem geográfica da luz desmaiada da aurora é a antítese da que medra no crepúsculo.
Sejamos mais ousados: o fio fino entre a alvorada e o crepúsculo é indestrutível. Se tirarmos os relógios da frente dos olhos (os relógios artesanais e os interiores, biológicos relógios), e se negarmos às pessoas-cobaias a identidade com a hora canónica, elas não conseguem distinguir o crepúsculo da alvorada. A luz baça, entaramelada nas pálpebras latentes, a luz que retarda o desligar do torpor, a luz desmaiada, é a mesma no crepúsculo e na alvorada, naquele exato momento em que, se fôssemos usar um instrumento que medisse a intensidade da luz, ele dir-nos-ia que é a mesma. Nem que seja no momento-sortilégio da equidistância da alvorada e do crepúsculo.
Nessa altura, as pessoas dirão que tanto faz o crepúsculo ou a alvorada. Na sua fusão, são inseparáveis.

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