Death in Vegas, “Hands
Around My Throat”, in https://www.youtube.com/watch?v=8UvQvOFRS9o
Deve ser da lava por todo o lado,
ou da tempestade de cinza que embacia os olhos, ou do assoreamento intelectual
que não é rasurável. Deve ser da confusão mental, porventura presságio da decadência
que se anuncia. Ou, talvez, não será nada disso: e, por dentro de uma cortina
densa, os olhos enovelam-se na sua sapiência para tirarem das várias camadas
sobrepostas um módico de beleza, talvez o arquétipo da pureza.
Não que a beleza, ou a pureza,
sejam totalitários nenúfares onde repousa o pensamento. A beleza, ou a pureza,
são matéria finamente decantada. Quando as mãos procuram nelas assentar, não
notam nada. Dir-se-ia: a beleza, e a pureza (que parece ser seu par lógico), são
miragens. Assim seja. As miragens, por serem conceptualizadas, existem. Como é
dada existência aos sonhos e sabemos que a matéria onírica é um arrufo (por
vezes) ou uma doce ilusão (outras vezes) que serve de batuta ao dia sobrante
depois do sono onde tais sonhos se alojaram. Um crepúsculo que se funde na
alvorada pode ser do domínio das miragens negadas pelos arautos das coisas
apenas tangíveis. Mas esses são personagens dispensáveis. Não sabem (estou
certo) o poder da poesia e nunca lhes foi dado a saber que no fio delgado da
consistência filosófica tudo é merecedor de interrogação, a tudo se credita a
hipótese de ser hipótese. Eles dirão, em forma de categórica sentença: o crepúsculo
está nos antípodas da aurora; e se alguém alegar, em seu desfavor, que a luz é
timorata no crepúsculo como na alvorada, insurgem-se contra a analogia usando a
persuasão das lições da cosmologia: a origem geográfica da luz desmaiada da
aurora é a antítese da que medra no crepúsculo.
Sejamos mais ousados: o fio fino
entre a alvorada e o crepúsculo é indestrutível. Se tirarmos os relógios da
frente dos olhos (os relógios artesanais e os interiores, biológicos relógios),
e se negarmos às pessoas-cobaias a identidade com a hora canónica, elas não
conseguem distinguir o crepúsculo da alvorada. A luz baça, entaramelada nas pálpebras
latentes, a luz que retarda o desligar do torpor, a luz desmaiada, é a mesma no
crepúsculo e na alvorada, naquele exato momento em que, se fôssemos usar um
instrumento que medisse a intensidade da luz, ele dir-nos-ia que é a mesma. Nem
que seja no momento-sortilégio da equidistância da alvorada e do crepúsculo.
Nessa altura, as pessoas dirão que
tanto faz o crepúsculo ou a alvorada. Na sua fusão, são inseparáveis.
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