Cinematic Orchestra ft.
Patrick Watson, “To Build a Home” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bjjc59FgUpg
A
velhinha vestida de negro, olhar sepulcral, derretido no chão, como se tivesse
vergonha de mostrar os olhos ao dia, ou às pessoas que passam, para não ter de
ostentar a melancolia da viuvez. A velhinha deixando escapar as unhas desarranjadas
– tal como se o oxigénio da existência tivesse terminado com a morte do marido
e viver fosse apenas uma possibilidade erma, um adiamento até que, em proveito
da religiosa crença, a morte a levasse para o pedestal onde, em paciência, o
consorte por ela aguarda.
(Alguém se sobrepõe ao narrador. Rouba-lhe
a voz no enredo. Disputa-lhe o papel. O rival assim entronizado desafia o narrador
deposto. Pergunta se ele reproduz uma história de vida conhecida, ou se limita
a dar asas à verve lírica. O narrador deposto, contrariado com a deposição, não
responde. O golpista, num acesso de solipsismo, retoma a história no ponto onde
se dera a interrupção. Muda as feições da história, ou melhor, as bainhas por
que se rege. Agora o enredo rege-se pelas suas condições.)
Mal
sabia a velhinha que o consorte já se tinha amantizado na pós-terrena dimensão.
Em bom rigor, o homem não se tinha amantizado. Ao entrar no portal celestial,
desligam-se os laços mantidos enquanto se foi pessoa viva. A viuvez pertencia à
terrena dimensão. Alcandorado à celestial dimensão onde os pufs almofadados (parecendo
deliciosas montanhas de algodão, exibem as donzelas à espera de companheiro)
eram convite à tentação. O homem descobriu que ninguém tem idade. Recuperadas certas
funções perdidas na decadente reta final da vida, achou uma segunda vida. Mal
sonhava a velhinha com as (na sua maneira de ver) diatribes do consorte. Mal sabia
que assim que fossem franqueadas as portas da celestial dimensão, ela não
voltaria a estar ao lado do anterior amado. Se fosse dado a saber tudo isto,
talvez não fosse uma viúva negra, como são quase todas as viúvas da sua geração.
(Entrada em cena de outro
candidato à narração. Desembainhadas as armas, conseguiu destronar o anterior
narrador e ainda vencer o primeiro narrador que, num laivo de reencarnação,
tentou resgatar o seu papel.)
Os
dois velhos estavam enganados. O velho morto estava apenas morto. Feito matéria
volúvel, à disposição do húmus que começou a digerir os restos mortais. Morto como
estava, nem deu conta do processo orgânico que o condenou à extinção material. Que
não nos iludamos: somos só matéria. Não sobra nada. A alma – para glosar os embusteados
com a permanência de algo depois da morte – desaparece com a extinção do corpo.
Se a velhinha quiser deitar a mão a uma interior compensação, ela que se
contente com a (quimérica) ideia de que a alma permanece nas memórias dos
outros, para quem o morto era importante. À velhinha sobra a possibilidade de
se refugiar no autismo das memórias, como se fosse uma eremita descontextualizada
do mundo. Para tudo terminar num fingimento colossal.
(Novo intérprete da narração,
depois de outra batalha pelo totem correspondente. Suplantou a concorrência dos
dois primeiros narradores, que procuravam nova prova de vida, entretanto
derrotados pelo narrador emergente.)
A
velhinha vivia uma vida airada. Só vestia de negro para enganar os costumes – não
que desse grande importância aos costumes; só não queria o incómodo de saber os
olhos censórios de uma sociedade anquilosada vertidos sobre ela. Não sentia
falta do marido que partira. Não sentia falta da sua boçalidade, da estreiteza
de vistas, da tremenda incultura, da ausência de carinho, do sexo bruto, da
ocasional violência quando o homem chegava a casa embriagado. Não sentia falta
da vida tacanha a que fora condenada. Em segredo, mantinha relação amorosa com
outro idoso que fora recentemente visitado pela viuvez. Vivia uma segunda vida
que excedia a que a, certa altura, acreditara ser a sua única existência.
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