19.1.18

O doutor que não usava gravatas

dEUS, “Suds & Soda”, in https://www.youtube.com/watch?v=h3r7Oo0Fs-8    
O doutor não usava gravatas – e todos os senhores doutores eram distintos homens que não iam ao ofício sem trajarem gravata a condizer com a indumentária. As pessoas em redor ficavam atónitas com o desassombro do doutor que não usava gravatas. Algumas, perplexas, ao verem como o doutor que não usava gravatas se fazia passear nos corredores na sua impante esfinge. Discutiam, as vozes que não tinham mais nada para fazer, se era provocação ou apenas por vocação. Discutiam se o doutor não queria usar gravatas por se saber corpo estranho num escol a que pertencia, mas que não fazia questão de ostentar a pertença; ou se era simplesmente por não apreciar o adereço na indumentária.
Um dia, estava o verão no seu pináculo e as pessoas amaldiçoavam o calor, o doutor que não usava gravatas não são apareceu sem a gravata da tradição (o que já não era motivo de espanto), como, mostrando incomodar-se com a canícula e aliviando-se num espírito pragmático, se fez apresentar na companhia de arejadas sandálias. Toda a gente estava em polvorosa. Naquele lugar tão distinto, onde as tradições eram lei de bronze, nem sequer aos mais novos era admitido mostrar os pés semidesnudados.
Ao contrário dos seus pares, tudo indicava que o doutor que não usava gravatas não fazia a higiene corporal numa base diária: os cabelos desgrenhados e untuosos; a barba desarranjada e caótica, com pelos abundantes num sector do rosto em contraste com a sua ausência de outro quadrante facial; as roupas desleixadas, deixando à mostra alguma sujidade; as unhas longas (e não se fazia constar que fosse guitarrista), não disfarçando algum bedum nas extremidades. Os que lhe eram mais próximos (e proximidade apenas significa contiguidade de espaços, que o doutor que não usava gravatas era um eremita, solitário como são os eremitas) juravam que havia dias em que a um metro de distância se notava um odor – e aqui faziam uma pausa na descrição, à procura da palavra certa, em estando os narradores tomados pela useira diplomacia do local – desagradável. Um dia, perante a audiência dos mais jovens, enquanto perorava através de um gongórico discurso e o olhar vagueava, perdido, nas abóbadas que compunham o teto da sala, descalçou-se e acomodou um dedo da mão a um dedo do pé, talvez acometido por um prurido. Os que estavam nas filas da frente repararam na meia fartamente rota que permitia o contacto de pele com pele dos dedos de membros diferentes.
O doutor que não usava gravatas era uma ilha não frequentada. Ignorado pelos pares, pelos outros funcionários e até pelos mais novos, que não o respeitavam devido à risível figura, o doutor que não usava gravatas também não usava outros pergaminhos do lugar em apreço: a intriga e a maledicência; a hipocrisia; a ingratidão; a sobranceria. Temia que assim que enfiasse uma gravata à volta do pescoço todos aqueles maus pergaminhos assentar-lhe-iam à medida do adereço. Ou então, era só um pretexto para afirmar a sua não convencional figura.

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