12.1.18

Roubaram o papel ao narrador

Cinematic Orchestra ft. Patrick Watson, “To Build a Home” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bjjc59FgUpg    
A velhinha vestida de negro, olhar sepulcral, derretido no chão, como se tivesse vergonha de mostrar os olhos ao dia, ou às pessoas que passam, para não ter de ostentar a melancolia da viuvez. A velhinha deixando escapar as unhas desarranjadas – tal como se o oxigénio da existência tivesse terminado com a morte do marido e viver fosse apenas uma possibilidade erma, um adiamento até que, em proveito da religiosa crença, a morte a levasse para o pedestal onde, em paciência, o consorte por ela aguarda.
(Alguém se sobrepõe ao narrador. Rouba-lhe a voz no enredo. Disputa-lhe o papel. O rival assim entronizado desafia o narrador deposto. Pergunta se ele reproduz uma história de vida conhecida, ou se limita a dar asas à verve lírica. O narrador deposto, contrariado com a deposição, não responde. O golpista, num acesso de solipsismo, retoma a história no ponto onde se dera a interrupção. Muda as feições da história, ou melhor, as bainhas por que se rege. Agora o enredo rege-se pelas suas condições.)
Mal sabia a velhinha que o consorte já se tinha amantizado na pós-terrena dimensão. Em bom rigor, o homem não se tinha amantizado. Ao entrar no portal celestial, desligam-se os laços mantidos enquanto se foi pessoa viva. A viuvez pertencia à terrena dimensão. Alcandorado à celestial dimensão onde os pufs almofadados (parecendo deliciosas montanhas de algodão, exibem as donzelas à espera de companheiro) eram convite à tentação. O homem descobriu que ninguém tem idade. Recuperadas certas funções perdidas na decadente reta final da vida, achou uma segunda vida. Mal sonhava a velhinha com as (na sua maneira de ver) diatribes do consorte. Mal sabia que assim que fossem franqueadas as portas da celestial dimensão, ela não voltaria a estar ao lado do anterior amado. Se fosse dado a saber tudo isto, talvez não fosse uma viúva negra, como são quase todas as viúvas da sua geração.
(Entrada em cena de outro candidato à narração. Desembainhadas as armas, conseguiu destronar o anterior narrador e ainda vencer o primeiro narrador que, num laivo de reencarnação, tentou resgatar o seu papel.)
Os dois velhos estavam enganados. O velho morto estava apenas morto. Feito matéria volúvel, à disposição do húmus que começou a digerir os restos mortais. Morto como estava, nem deu conta do processo orgânico que o condenou à extinção material. Que não nos iludamos: somos só matéria. Não sobra nada. A alma – para glosar os embusteados com a permanência de algo depois da morte – desaparece com a extinção do corpo. Se a velhinha quiser deitar a mão a uma interior compensação, ela que se contente com a (quimérica) ideia de que a alma permanece nas memórias dos outros, para quem o morto era importante. À velhinha sobra a possibilidade de se refugiar no autismo das memórias, como se fosse uma eremita descontextualizada do mundo. Para tudo terminar num fingimento colossal.
(Novo intérprete da narração, depois de outra batalha pelo totem correspondente. Suplantou a concorrência dos dois primeiros narradores, que procuravam nova prova de vida, entretanto derrotados pelo narrador emergente.)
A velhinha vivia uma vida airada. Só vestia de negro para enganar os costumes – não que desse grande importância aos costumes; só não queria o incómodo de saber os olhos censórios de uma sociedade anquilosada vertidos sobre ela. Não sentia falta do marido que partira. Não sentia falta da sua boçalidade, da estreiteza de vistas, da tremenda incultura, da ausência de carinho, do sexo bruto, da ocasional violência quando o homem chegava a casa embriagado. Não sentia falta da vida tacanha a que fora condenada. Em segredo, mantinha relação amorosa com outro idoso que fora recentemente visitado pela viuvez. Vivia uma segunda vida que excedia a que a, certa altura, acreditara ser a sua única existência.

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