24.1.18

Sobre a importância das coisas desimportantes


Wand, “Lower Order”, in https://www.youtube.com/watch?v=3OixbjGFHMU 
If the future isn’t bright, at least is colourful.
A tentação inadiável de atribuir importância a algo que seja levado ao altar onde se alojam as coisas importantes: é um garrote que comprime a jugular – e os dias inteiros em que se anda em demanda das importantes coisas parecem dias adiados, ou dias que não chegaram a existir, pois o tempo ficou gasto antes do tempo. E da importância consagrada sobra o critério para medir o compasso que nos rege. Dizem, em abono dos compêndios seguidos: somos a intensidade do ser pela validade das coisas importantes que vieram às nossas mãos. E se por acaso muitas delas ficam emolduradas na poltrona das impossibilidades, é imediatamente decretado o logro de quem somos.
Tudo isso está profundamente errado. Não temos de ser os piores censores de nós mesmos, nem tem grande serventia alçarmos ousados propósitos e depois convertê-los nas importantes coisas que ficam à espera de entrega. O mais certo – se ficarmos reféns de tal conduta – é metermos os pés no vazio consecutivo a um precipício que não deixou de ser labéu, mas que fingimos não o ser mercê dos olhares promissores que foram depositados nas tão importantes coisas. A colheita pode sair fracassada. Depois, às mãos vazias chegam apenas as lágrimas de angústia.
Não temos de ser prisioneiros de tão elevada bitola. Sensato será encontrar, nos interstícios das sombras, pequenos fragmentos, coisas desimportantes. E saber preposterar o seu estatuto. As pequenas, muito pequenas, coisas que se atravessam, ora frequentemente, ora numa singular vez, no mapa do tempo de onde somos habitantes. Uma flor que medra entre a folhagem ainda rara numa árvore ainda sujeita aos rigores do inverno. A pequena onda do mar que desfaz o mar chão – ou o mar tumultuoso em sua imponência. Uma estrofe hemodinâmica, e de como o laconismo das palavras esconde, em suas entrelinhas, uma miríade de imagens. Uma música desemparelhada dos preconceitos. Um gesto suave no rosto da mulher amada. O gato que se aninha no colo, ronronando em rima metricamente absoluta. A implacável paisagem da serrania, a sucessão de desfiladeiros alcantilados que mergulham verticalmente numa estreita garganta onde o rio esventra as rochas. O sortilégio da gastronomia, da sua confeção e das experiências (mesmo quando têm  mau fim). Um monólogo da atriz no teatro, a constelação de palavras que desce do palco à plateia numa enxurrada demiúrgica. Uma cidade desconhecida que perdeu esse estatuto. O mundo que se ganha a conhecer o mundo. A manhã. O mar que espreita pela embocadura da janela.
Tudo isto e o muito mais que se possa arregimentar, à medida que fluem os dedos no teclado, à medida do pensamento que ganha voracidade. Com uma advertência: devem permanecer desimportantes coisas, alfandegando a sua ambição, sem se transfigurarem em importantes coisas. A ser o caso, serão presas da colossal ambição. Nunca serão importantes, na exata medida da sua desimportância. Por paradoxal que seja, essa é a sua caução única: são anonimamente importantes, por serem desimportantes.

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