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Viera tarde. Os olhos tinham uma
alvorada estiolada, a têmpera das palavras que julgara poéticas roubando-se à
hibernação demorada. Era como se uns ramos se soltassem do corpo e com eles um garrote
se dissolvesse em águas turvas. Essas águas despejavam-se, já transparentes, após
a decantação das palavras esboçadas numa folha amarrotada. A caneta era
indomável. Melhor: a mão que a segurava era indomável. As palavras iam e
vinham, céleres, rio selvagem tragando os penedos esguios em que esbarrava.
Pela noite, açambarcava a luz da lua que era sua timoneira. No meio do campo,
apenas na companhia das aves que sussurravam seu sibilo e do rumor das searas levitadas
pelo vento, mergulhava no bloco de notas. Esboçava umas palavras. Sobre um cão
vadio em demanda de alimento, o mendigo estouvadamente dormindo ao relento sem se
importunar com o trânsito da manhã, os olhos enfeitiçados de uma criança em dia
de aniversário, a mulher de limpeza na repartição pública ignorando o ministro
que botava discurso. Às vezes, um pequeno amontoado de palavras era o mote para
um texto embebido no truque das entrelinhas. Cuidava da elegância das palavras
que irrompiam, com jactância, da mão que empunhava a caneta. Por vezes, adormecia
sobre o caderno quase repleto e encardido pelo uso, adormecia sonhando que as
palavras bolçadas eram devolvidas à caneta – como um filme em “rewind”. Congeminavam-se no feitiço do tempo, amadureciam
no pensamento. Quando voltavam a sair da caneta, emolduravam um poema
diferente. Singelas. Lá vinham as palavras simples que douravam o relicário dos
sentidos. Lá vinham os testamentos que o futuro trataria de depor. E uma
garrafa de rum, guardada para quando o tempo futuro chegasse, e então ser
recolhida das areias molhadas testemunhando a maré-baixa que destapava segredos
que o tempo passado enfeitara. As palavras resgatadas ao vidro opaco eram um
corpete de notas musicais. Sem palavras a destoar a melodia inebriante. Afinal
o poeta era músico. Foi preciso partir para descobrir o segredo.
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