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Deixa-os ser o que quiserem.
Deixa-os beber o vinho que houver, eles que sabem o sabor da embriaguez e a dor
que engrossa com a turbulência da ressaca. Deixa-os emulsionar os sentidos, aplaudir
as dissidências, oferecer a si mesmos um bálsamo de fortuna. Deixa-os ser como
querem.
Deixa-os medrar na
indigência, se acaso a indigência for sua escolha. Deixa-os adornar as esquinas
da erudição rançosa e, benevolente, dedica-lhes ovações para se convencerem que
a erudição é condição superior. Deixa-os usar os andrajos que vierem à mão, os
cabelos sem penteado ou à míngua de lavagem, ou os cabelos mimoseados por
penteados barrocos. Deixa-os praticar o linguajar que se desembaraça dos
cânones. Deixa-os entretidos com a alucinação que lhes traz préstimo. Deixa-os,
aos outros, na sua apessoada condição como se o verniz fosse tudo o que conta.
Deixa-os tesos com a convivência social, nos passos furtivos de um faz de conta
que se substitui ao acontecido.
Deixa-os consumir substâncias
perseguidas por um legislador puerilmente sectário. Deixa-os ser socialistas,
fascistas, comunistas, conservadores, ou o que for da sua aprazível
preferência. Deixa-os ser bons garfos, engordar para fora do corpo,
encharcarem-se de colesterol, ficarem no limiar da apoplexia. Deixa-os ser
pródigos no casino, que os proveitos que houver transitam no seu bem-estar e as
perdas (por mais que sejam) não interessam a mais ninguém. Deixa-os discordantes
da condição politicamente correta, sem eira nem beira e sem que essa orfandade
seja ardil de censura. Deixa-os entregues à abstinência, ou à promiscuidade, ou
ao que quiserem, que não é teu ofício espreitar entre os lençóis que não são
teus.
Deixa-os cultivar o que
julgares ser inestético, pois os padrões da estética encerram-se no eu que os
define. Deixa-os julgar os que passam, deixa-os fecundar a chacota, deixa-os
arrepiar a fina ironia, que um dia talvez saibam que o veneno que dão a provar sobre
eles se abate. Deixa-os ser curadores da beatificada moral que se estende
como devir indeclinável.
Deixa-os. Não os importunes.
Se muito te custar fazer-lhes a vontade, simula concordância. Deixa-os felizes.
Talvez te deixem esquecido no esquecimento que és para eles. E assim te
devolvam a serenidade que nos outros te é deslegitimada.
1 comentário:
(...) Afinal, pedirei perdão por me ter alimentado de mentiras. Prossigamos.(...)
in: "Uma Temporada no Inferno", Arthur Rimbaud
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