4.10.13

A dádiva do mar


O mar, o medonho mar quando as tempestades o enfurecem, santuário do ganha-pão. De gente destemida que, as mais das vezes, nem sabe nadar se o mar os roubar à traineira. E mesmo assim, a gente destemida, medindo o temor do mar com a argúcia de um relojoeiro, faz-se ao mar em demanda do seu proveito: os peixes que foram feitos, dizem que pela generosa mão divina, para apadrinhar um sustento de sacrifício.
Os pescadores são marinheiros amadores. Não se julgue que são marinheiros que o seriam se pudessem marinheiros ser: o mar não é seu lugar genético. É o escritório que os escolheu, e eles resignados ao seu império. Cultivam um respeito sagrado. Assim como assim, o mar que lhes traz os mantimentos pode levá-los, e sem aviso, para a sepultura que pode ser nas suas próprias profundezas. A atividade piscatória continua a ser um sortilégio. Os rostos fechados, curvados pelas rugas que parecem caução de todo o salitre que neles se sedimenta, parecem ter desaprendido a felicidade. O imaginário popular está repleto de queixumes dos pescadores, de quão dura é a faina, de como só homens de barba rija, homens que podiam ser piratas no tempo em que os havia, têm têmpera para irem ao mar. Pois se é nele que está a dádiva que lhes faz a vida possível, os pescadores hibernam os medos que povoam os pesadelos e entregam-se ao mar como ele estiver.
Querem o seu quinhão da dádiva que o mar tem. Manejam as artes de pesca com a destreza que não se aprende nos livros. É outra escola da vida. Quando a embarcação se faz ao porto onde o mar se faz chão e as amarras são atadas ao cais molhado, entoam suas preces silenciosas. O mar foi piedoso. Trouxe o quinhão permitido e trouxe-os de volta às mulheres. Que os esperam com o coração depositado nas mãos enquanto o mar for tutor dos consortes.
A volta é a celebração que nunca deixam de honrar.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

Os pescadores vestem a vida como ela vem. Indiferentes, acendem as estrelas ou apagam o Sol.
Quem espera em terra responde ao sal do mar com o sal das lágrimas (quando as há). Esgotadas as preces gastam e reinventam a palavra "talvez" que, segundo o poeta Albano Martins, é a única palavra que não tem casa.