David Sylvian, “Silver Moon”,
in https://www.youtube.com/watch?v=RC3q5eOO7R8
Do lago ao albergue, era uma
caminhada esticada. O lago era do lado contrário ao da entrada do parque mais
próxima do albergue. Não havia mal. As pernas e os pés já não estavam a gritar
dores, depois do período de descanso em frente ao lago, a apreciar a encenação
da menina, da avó e dos gansos. A pergunta que subiu à boca de cena ganhara
foros de permanência depois de se levantar do banco do jardim e empreender
caminho em direção do albergue: seria pessoa diferente se tivesse sido pai? Teriam
as angústias sido amalgamadas caso tivesse conhecido o gosto da paternidade? E,
a pergunta que aparecia como pano de fundo a todas as demais, por mais que ele
não admitisse: se ele e a consorte tivessem sido pais da mesma criança, ainda
estariam juntos?
Custou-lhe perceber a permanência das
interrogações. Que se lembre, nunca nutriu gosto por crianças recém-nascidas,
nem atraía a ideia de ser tutor da educação de uma criança gerada com os seus
genes. Olhava para alguns exemplos, na família e entre os amigos, e não era uma
ideia que o motivasse. Fazia parte da sua frieza, esta indiferença pelas
crianças dos outros, mesmo que os outros fossem pessoas muito próximas de si. Lembra-se
que uma prima o chamou à pedra por só a ter visitado três semanas depois de ter
dado à luz.
A ideia não fora falada nos primeiros
anos do casamento. Era um não-assunto. Só mais tarde – nos derradeiros tempos
em que viveu com a consorte – ela trouxe o assunto à colação. O senso comum
diria que foi quando o seu relógio biológico deu notícias. Ele recusou as
abordagens, interrompendo a conversa (nas poucas vezes que o assunto foi
levantado) de forma abrupta, rude, marcando posição inequívoca. Nem os apelos
dos pais, que queriam ser avós, o demoveram da recusa da paternidade. O
solipsismo, a meias com um hedonismo que disfarçava a preguiça para lidar com
as dores da paternidade, justificavam a intransigência no tema. Por uma prima
da ex-consorte, soube, algum tempo depois desta ter fugido na companhia do
vendedor ambulante de bugigangas, que ela estava grávida. A dor que ainda
sentia passou por um alívio: ao menos, ela não o poderia acusar de não ter sido
mãe. Não que este alívio interessasse para o caso, mas anotou-o para os devidos
efeitos.
Voltou à dúvida que o assaltou. Por pouco
tempo: era uma dúvida que exigia o contrafactual. Imaginar como as coisas
teriam sido na impossibilidade de elas terem seguido esse curso (porque não foi
o caso, pura e simplesmente) é de uma inutilidade confrangedora. Ele bem sabia
que às vezes se deitava ao repertório de exercícios contrafactuais, como admite
que tanta gente o faz. Admitia, também, que às vezes era só para matar o tempo,
à falta de outras empreitadas excitantes (ou na falta de diligência para
abraçar as que estavam em lista de espera). Outras vezes, era por julgar que a
invenção de uma extensão da vida era precisa para adornar a vida que levava –
como se esta fosse exígua para nela caber tudo aquilo que ele julgava ser. Nunca
dera grande valor a estes exercícios que especulavam com a existência, como se
a vida pudesse ser deitada num tabuleiro, em forma de jogo, e as peças
devidamente manipuladas por ele, do exterior, sendo ele o beneficiado (ou o prejudicado,
consoante os casos) do exercício lúdico.
Desta vez, com a dúvida virada para o
que teria sido na hipótese da paternidade, por um momento julgou que ficaria
refém do exercício especulativo. Conseguiu derrotar os ventos nesse sentido. Não
fora pai. E não interessava saber se seria pessoa outra na eventualidade da
paternidade.