São os paramentos que denunciam a condição. A voz afogueada que desmaia numa falsa serenidade. Dizem que não há foz para os rios rebeldes: do seu paradeiro não se diz nada, já não estão mapeados. Nada é insólito, ou sequer original. Tudo parece um torneio de lugares-comuns, em que as generalidades, entarameladas com banalidades, tomam conta do palco que a multidão quer frequentar. Em vez de peças de teatro que forçam o pensamento, preferem o pensamento afeiçoado. É menos custoso. Saber apenas dos meandros do conhecido é um nomadismo aceitável – sossegam-se em trejeito de sanação de hipotecas. As bandeiras visitadas são iguais às de antanho. Há anos que não inventariam palavras novas no vocabulário. As que desconhecem deixam estar nessa condição, abrir um dicionário é empreitada que exige consumições desaprováveis. Se pudessem repetiam os dias. Como se houvesse um ritual fixado em letra de lei e todos fôssemos cópia uns dos outros. Aos párias, o opróbrio geral em rima condenatória. Não se pode confiar em quem pensa diferente. O desalinhavo é doloso. Ferve numa sublevação distante que, se pudesse, desfazia os alicerces de tudo e dinamitava a argamassa que é conhecida de todos (e de que fazem bandeira). A previsibilidade joga-se contra eles e eles não sabem. A previsibilidade não é acautelada nas suas intenções. Não a admitem a jogo, são eles os tutores dos rituais que, de tão ensimesmados, já perderam a usura que se atribui aos rituais. Mergulhados no seu privativo abismo, exibem a falta de comparência ao mundo restante. Não é contratempo que os ilibe do sono. Por dentro da sua insalubre insciência, convencem-se que não é cadastro, mas sim exemplar nota curricular. Tão fadados para serem o que de si imaginaram ser, vivem a fugir da vida que não chegam a conhecer.
30.9.21
Déjà vu (short stories #362)
29.9.21
Matéria inconfundível, ou o abecedário dos fugitivos
Falava-se de verbos fiduciários, a caução que todos diziam precisar para assinar uma folha em branco. Seria como deitar gelo fungível sobre a matéria combustível à espera que a febre deixasse de consumir os corpos. De outro modo, todos seriam fugitivos. E, desde o exílio, só ficariam em sossego se conspirassem contra a serenidade das marés que se deitam na esquadria da usança estabelecida.
Talvez não fosse preciso tanto. Podia nem sequer ser preciso o exílio se a fuga fosse apenas hibernação interior. O que se impunha era saber de que matéria são feitos os dissidentes incorrigíveis. Têm de costurar mentalmente a usura da matéria inconfundível, o seu magma condutor. Depois, na posse das referências que os situam na geografia, refugiar-se-iam no interior de si mesmos, herméticos às influências exteriores. Os outros não deixariam de ser os outros, mas sem produzirem as consequências de outrora.
Não se trata de uma apologia da misantropia. (E que fosse: a misantropia não é crime e, muito embora não prescreva nos juízos morais, esses são a tradução dos barómetros usados pelos outros; são barómetros sem validade a não ser para eles.) Cuida-se da procuração para a afirmação de uma identidade. E a identidade, ainda que seja permeável aos mares exteriores e aos ventos deles exarados, é penhor da matéria inconfundível que nos torna únicos.
Alguém dizia, excitado pelos oráculos que destilam um porvir risonho baseado na bondade das pessoas, que o tempo se encaminha para a supressão do eu. Seremos – rematava o otimista de serviço – uma massa indistinguível, fautores de uma convivência sem beligerâncias nem confrontações espúrias. Seríamos uma massa indistinta, assente no binómio da supressão do eu e da privação das liberdades axiais.
No estreito canal que leva o caudal da identidade de cada um, as paredes narram histórias ancestrais de sangue vertido em combates por haver alguém que não tolerou a liberdade de um seu diferente. A matéria inconfundível é a impressão digital inapagável, que nem a reconfiguração dos conceitos e a reconstrução da História do futuro conseguem destruir. Pois há sempre uma válvula de escape: sermos fugitivos de um lugar onde nos sejam impostas baias que cerceiam o nosso ser. Mesmo que continuemos no mesmo lugar.
28.9.21
Quero, posso e posso
Working Men’s Club, “Teeth”, in https://www.youtube.com/watch?v=0ovHJ_NzHbE
(Nótulas de uma realidade paralela na ressaca das eleições autárquicas)
O país inteiro devia ser bordado com o estalão da casta e só os da casta (ou os que à casta aderissem, por gesto oportunista que seja) poderiam amesendar nos granjeios que o mecenas que nos tutela deixou em nosso bornal. E se, na primeira hora despois do sufrágio, os números neófitos anunciaram o que não constava sequer dos pesadelos da casta, era entrar em negação, esboçar discursos fátuos que almejavam arregimentar as hostes, como se fosse possível, através do risível postular de uma realidade alternativa, mudar a feição do sufrágio (ou convencer, à posteriori, os eleitores que não foram convencidos pela bondosa retórica da casta). Já que não se pode torcer os números até falarem o que queriam que eles falassem.
Pode-se puxar lustro aos números que conferem o total, como se o total escondesse as derrotas que calam fundo e doem mais. Invoque-se a filosofia, não a matemática: nem sempre quantidade se traduz em qualidade. Uma derrota cirúrgica no meio de um punhado de brilharetes banais ou inexpressivos faz com que o número menor morda mais do que o número maior.
Parece que a recente moda dos vulcões (em poucos dias: Islândia, La Palma, Etna, Guatemala), com o caos intrínseco, se inseminou artificialmente entre nós e um triunfo que seria tranquilo se obnubilou porque os súbditos não esconderam do voto um certo cansaço dos regentes. Nem os logros, tão habituais em campanha eleitoral e com a cumplicidade do eleitorado passivo, ou a subida a palco do timoneiro, salvaram a casta de uma tremenda desilusão na ressaca do escrutínio. Para compensar, na noite da contagem dos votos uma matriz foi encomendada para o devir próximo: fomos informados – ou, melhor ficaria: fomos instruídos? – que se hoje fossem as eleições que mais contam a maré continuaria a ser a mesma e o patamar do absolutismo estaria a uma vírgula de distância.
Esta é a enseada para que fomos empurrados. Talvez cheire um pouco a mexicanização da política, com a casta numa deriva autocontemplativa, não longe de um endeusamento em causa própria, apontando para as várias alternativas com desdém – como quem faz a seguinte pergunta de retórica: é destes fracos que quereis as mãos no leme da coisa pública?
Não é a demissão das alternativas que prospera. Este enredo manipulador é a luva que serve na mão dos inquilinos do poder. Mais importante do que o conto envenenado que nos é servido, com o beneplácito de um séquito de peritos e a passividade ou a conivência do séquito restante, é precatar a mexicanização do regime. A bem da saúde da democracia. Para não sermos ainda mais sequestrados com o quero, posso e posso a pretexto da fragilidade das opções. O vulto de D. Sebastião continua embebido nos escombros da História. Hoje, a casta é a tradutora pública de um sebastianismo que ameaça tornar-se endémico, como se a casta vigente fosse o mapa inevitável do porvir.
Ainda a dramaturgia se compunha nos seus alvores e os habituais atores pedidos de empréstimo ao âmago do sistema desviavam a conversa dos muitos que praticaram abstinência democrática. É uma metade que ficou de fora. Os poucos que arriscam uma interpretação ilibam os atores do sistema, como se a culpa pertencesse apenas aos súbditos que se demitem do direito de sufrágio. Não se aprende nada com os avestruzes – ou talvez até aprendam muito, estes atores contumazes, pois são peritos em copiar os avestruzes e a poluir o frugal entendimento do cidadão comum.
A culpa é dele(a), cidadã(o) comum, que não se motiva para o sufrágio, sem perceber os superiores predicados dos opositores ao sufrágio. Devia – quem sabe? – ser condenado(a) ao voto obrigatório, para não menosprezar a fonte da democracia. Ou – quem sabe, ainda? – devia ser penalizado(a) com uma sobretaxa no IRS por demissão dos deveres de cidadania. Só falta saber quando e em que circunstâncias se aplicaria o princípio da equivalência aos representantes quando fosse comprovado quão medíocres foram durante o mandato. Para não nos esquecermos do significado de democracia ao sermos condescendentes com a desigualdade entre representantes e representados.
27.9.21
Alma hipotética
A alma hipotética filia-se no cabaz das possibilidades. Ideia-se com os dedos avulsos que se subtraem ao ninho do tempo certo. Recusa a reprodução dos tempos vários que se somam na finitude da existência havida. A alma hipotética arma-se de hipóteses e as interrogações sucessivas são o seu ornamento centrípeto.
Se a alma fosse hipotética – pressente a alma hipotética que se agiganta na levedura de um ensaio – em quanto seria diferente da alma que lhe serve de equinócio? A alma hipotética é o avesso da alma que lhe dá origem? Para ser parte íntegra do elenco, a alma hipotética convoca um barómetro de dissemelhança. De outro modo, não seria uma alma hipotética, apenas o eco da alma conhecida.
À alma hipotética só interessam as interrogações. São o seu ponto de partida e a escala onde o pensamento que se especula quer âncora. Através da alma hipotética, um ser pretende sê-lo de outro modo. Recusa o ninho columbófilo. Não quer que a alma especulada se enraíze na repetição dos dias e das palavras.
A alma hipotética precisa de uma arma. A arma hipotética desafora os preconceitos e as recusas militantemente ajuramentadas, que precisam de uma saraivada de balas para serem reduzidas a nada. A alma hipotética não consegue medrar se não forem destruídos os alicerces da alma que lhe dá origem. Apesar deste vínculo (sem uma a outra não tem fundamento), elas não se identificam. A alma hipotética é um desenho (melhor se diria, um esboço) com as latitudes ainda disformes, os rostos limítrofes que são silhuetas sombrias, as palavras que não se libertam do remoinho.
A alma hipotética não tem paradeiro. Levita nas possibilidades que se desarrumam entre a ordem caótica que é mais um presídio – como se houvesse no tempo dado os interstícios quiméricos que ensinam segredos. Em vez das almas sextantes, a alma hipotética amotina-se contra o passado e não espera fundos do futuro em linha de espera. Pois ela não passa de uma possibilidade, fundeada num cais que não tem rima com esteios.
24.9.21
Floresta dos sonhos
A floresta povoada pelos sonhos estava à frente das mãos, pedindo a água que precisava para ser fruída. Os pés avançavam, sem temor, mas errantes. Parecia anestesiado. Ou inebriado pela vegetação luxuriante, ou apenas pela impressão de desmatar um chão nunca dantes pisado por almas humanas.
Crismou-a como floresta dos sonhos. Naquela tarde, ao perder-se sem perder o norte, soube dos sonhos emoldurados graniticamente nos fiordes da memória. Inventariou-os. Deu-lhes arrumação, como se a floresta fosse a biblioteca dos seus sonhos e nela houvesse estantes criteriosamente escolhidas onde cabiam os sonhos em sua ordenação. Soube dos gatos fugidios, das palavras esquecidas, das pessoas movediças, dos amores e dos desamores, dos temores desarrazoados, das contrapartidas, dos laivos de diplomacia (insistia que a vida é um contínuo exercício de diplomacia), dos estuários demandados, das juras arrependidas – de muito mais que desfilou, em velocidade vertiginosa, diante da tela que se compunha no olhar.
O caminho errante levou a uma clareira. Era como se houvesse uma quarentena na floresta e, naquela clareira, as árvores não medravam. A vegetação rasteira, uma mistura de arbustos avulsos, era a única prova de vida admissível na clareira. Teve medo do vazio aberto no meio de tanto arvoredo. Parecia que aquele lugar participava a misantropia e as árvores recusavam-se a estacar naquele pedaço de terra. Ou podia ser que um cataclismo qualquer, numa era quaternária (por exemplo), tivesse esterilizado a clareira e só a vegetação rasteira conseguisse irromper entre o chão pútrido. E pensou: às vezes, os sonhos perdem-se num alpendre onde os esperam os intérpretes de um pesadelo.
Não sabia se estava perdido no meio do denso arvoredo. Por vezes, avançava com esforço, tinha de desbravar os arbustos que se colavam à pele das árvores e impediam o chão. E não é isso a vida? A vida não precisa de sonhos para se consumar.
Enquanto apreciava o efeito quimérico da luz do sol irradiando entre os rasgões permitidos pelas ramagens, compreendeu que a vida sobe a um púlpito quando ela própria se traduz num sonho.
23.9.21
O sonho dos sonhadores
O navio vagaroso desbrava o mar sem terra por perto. O navio parece fantasma. Talvez seja da noite funda e a essa hora os marinheiros estão recolhidos. Mas não é noite funda. Não tem relógio, mas diria tratar-se de uma hora qualquer entre o estertor da manhã e o alvor da tarde. Uma leve brisa descompõe o chão do mar, desenhando uma suave coreografia de ondas.
Desce ao convés. A ferrugem emaranhada no ferro dos alicerces do navio era testemunha da solidão. Percorre os estreitos corredores. As portas dos camarotes estão todas abertas e nem vivalma. Na casa das máquinas, apenas o intenso cheiro a óleo e o ruído tonitruante dos motores que fazem avançar o navio à velocidade de cruzeiro. No camarote do comandante, as garrafas de rum e de brandy diligentemente alinhadas numa estante sobre a secretária telintam, embaladas pela coreografia do mar. Continua calado, a rimar com o silêncio estrutural. Quis falar, quis fazer a pergunta que se impunha (“está aí alguém?”). Refreou a pulsão. Tinha medo de acordar fantasmas escondidos nos interstícios do navio. Tinha medo que os fantasmas colonizassem o navio fantasma.
Não entendia como o navio podia avançar à velocidade de cruzeiro se ninguém o tripulava. Talvez fosse como os aviões, sofisticadamente programados para voarem em piloto automático, os pilotos escrutinando as condições de voo enquanto o avião voa sozinho. Não sabia que isso podia acontecer num navio. O vento passou a soprar com mais força e o mar agitou-se. O navio não perdia a rota (pelo menos, era o que queria acreditar). Se estava em navio automático, haveria de arrimar a um porto. Por mais que demorasse a viagem, que os tanques de combustível não são infinitos.
Anoiteceu. O silêncio parecia doer mais na companhia da noite. Ao menos o céu renunciara às nuvens e podia apreciar a cintilação do mar de estrelas que se compunha. Não era noite de luar. O vento sossegara. Sobre a mesa improvisada no convés, os restos das rações encontradas na dispensa da cozinha e a garrafa, já meio vazia, de rum. Onde seria o destino? A pergunta foi esmaecendo à medida que foi tomado pela sonolência. Deixou-se dormir. Podia ser que, ao acordar, o navio automático já mostrasse terra à vista, ou um cais acolhedor.
Antes de adormecer, derramou o resto do rum no mar. Queria manter um módico de sobriedade, para que o rum não embaciasse o sonho do sonhador. Os pés tinham âncora em terra firme. Sonhara com um sonho em que sonhava que estava num navio fantasma, a sonhar. Mas talvez ele fosse o fantasma evidente. Ou um palimpsesto de sonhos.
22.9.21
E, todavia, os olhos eram um deserto de lágrimas
A angústia era uma fia métrica baça, atirada sobre o chão em que posava. Podia desestimá-la. Os nós dos dedos eram a argamassa que se insubordinava na tradução dos contratempos. Insistia: poucas vidas há piores. Depressa se esquecia.
Não passava pelas hipóteses ser um juízo extravagante. Um exagero, como as pessoas normais são achacadas aos exageros. Consomem-se em modestos episódios que compuseram a pauta dos sobressaltos e extravasam as dores consequentes. Um observador imparcial diria: é pena que assim não seja quando os acontecimentos se abatem por simetria e, em vez de matéria-prima para angústias, um acontecimento fulgurante devia ficar embalsamado para memória futura. Mas depressa se dilui no vértice da desmemória.
Na bolsa de valores das posturas, estão em alta as que se conduzem pelo fio fátuo do negativo. O contraste não serve para sopesar, pois ao avesso não é imputado o crédito devido. Um sobressalto que desarruma os alicerces demora-se em cicatrizes. Uma proeza, uma gratificação, depressa são tomadas pelo esquecimento. É como se as coisas boas fossem inatas e, por isso, depressa são destinadas ao logro do desvalor. As más eternizam-se à janela dos sentimentos. São o fermento válido que as torna numa dimensão excessiva.
Dizem (atentos leitores das almas alheias) que os olhos já nem sequer se marejam no púlpito das angústias abundantes. É sinal de que o jogo está viciado. Pois nem sequer as dores compungidas funcionam como o punhal que se crava fundo na carne, sangrando-a. As pessoas são um ardil de si mesmas. O jogo está viciado porque as pessoas estão viciadas na adulteração dos sentimentos. Um grama de angústia pesa mais do que um quilo de fortuna. E um quilo de fortuna devia ser aparado por menos cicatrizes do que uma tonelada de infortúnios. Mas não é.
O placebo ataca desde a ossatura, agigantando-se à medida que sobe à superfície e coloniza a pele. As pessoas convidam-se para a angústia, chamando-a a ocupar o seu lugar no palco, vertiginoso e vulnerável, onde são apenas figurantes. Os olhos desprovidos de lágrimas são o alfabeto da adulteração do ser. A vontade deixa de ser a tradução da autonomia. Reconstitui-se num simulacro.
21.9.21
Dar corda aos sapatos
O medo era o rastilho que era preciso para derrotar o sedentarismo. Pessoas militantemente incapazes de darem um passo célere numa direção mudam de atitude quando sentem o medo a bafejar no pescoço. O medo é o remédio para fazer desabar os preconceitos. Dar corda aos sapatos é a única emenda quando o sedentarismo desafia a integridade física.
A ideia de dar corda aos sapatos é como naqueles relógios a que é preciso dar corda para não ficarem adormecidos na insolente marcha do tempo. Quem dá corda aos sapatos é, tal como a esses relógios, o usuário. As maravilhas de tecnologia inventaram relógios que dispensam o ritual de dar corda. Funcionam a pilhas. É preciso mudar a pilha quando atinge o prazo de validade. Também há sapatos que não precisam que se lhes dê corda? Esses sapatos substituem a vontade do usuário? Não e não, respetivamente. Os sapatos não andam sozinhos. São motorizados pela vontade de quem os calça.
Dar corda aos sapatos também é uma metáfora. É quando estamos imersos na indolência, ou quando precisamos de um abalo sísmico que mude a têmpera desde o magma, para acostarmos a um desiderato. Uma resolução a preceito é a ignição necessária. Só com a indulgência da resolução não se chegará ao desiderato. À medida que a inércia corresponde à medida do tempo, a resolução tende a ficar esquecida nos armários onde jazem as coisas destinadas a serem irrelevantes. Não será desse modo se dermos corda aos sapatos e nos convencermos que devemos dar seguimento à resolução. Para não ficarmos por boas intenções que nunca chegam ao pedestal do julgamento.
Damos corda aos sapatos porque não é bom olhado de nós dizerem que somos pusilânimes. Damos corda aos sapatos para eles voarem e com o seu voo nos levarem para os lugares de outro modo inacessíveis. Talvez fosse melhor dizer-se que damos corda às pernas, que não têm mediação.
20.9.21
História do futuro
O dia seguir-se-á à noite – ou, o que não é de somenos importância, a noite será consecutiva do dia.
As estações serão quatro, por esta ordem: Outono, Inverno, Primavera e Verão (pondo o relógio a zero quando a escola começa um novo ano), a menos que o aquecimento global conspire contra esta angra de conservadorismo.
As pessoas hão de continuar a festejar o ano novo cheias de resoluções que juram, em bom jurar, que o neófito ano será a tradução de mudanças a esmo.
As escolas hão de continuar a ensinar (um módico). As universidades serão o santuário dos saberes arranjados na imensa enciclopédia popular (e aparentemente democrática) que é a internet – e os professores já não hão lamentar a sua irrelevância.
A música continuará na senda da reinvenção.
Os literatos serão dispensáveis (à mercê da democratização dos saberes que é mercê da internet).
O aquecimento global fará prova de vida e é provável que as estações se confundam umas nas outras, com tempestades estivais e estios invernais e Primaveras outonais e Outonos primaveris (ou a fusão da Primavera e do Outono).
Gurus irrepreensíveis emergirão para dar asilo aos descamisados de identidades, inaugurando uma nova arca epistolar que os extrai da orfandade.
As nações continuarão a ser o farol. As guerras, a sua consequência.
As armas e os arsenais não serão banidos.
Os pacifistas não deixarão de ser visionários sem tempo a preceito.
O abismo humano estará mais fundo, com a desconfiança a nortear as condutas e a antipatia boçal a bolçar por todo o lado, desmentindo os opúsculos homeostáticos que preconizam a utopia da cooperação.
Faltarão poucos cidadãos para lhes serem apostas comendas presidenciais por ocasião do dia de Camões e das comunidades.
As indústrias terão de ser verdes; o mundo será um condomínio de verde – se não, o aquecimento global será o nosso algoz (ou nós, ordenantes do aquecimento global, a confirmação da nossa própria autofagia).
As religiões continuarão a matar.
Políticos regentes, ensimesmados nas curtas vistas e no logro da demagogia, serão consumidos pela avareza e neles lavrará o caudal da corrupção.
As leis continuarão a ser ostensivamente desobedecidas e os delinquentes raras vezes descobertos e punidos.
Os países grandes continuarão a ser grandes e os pequenos, irrelevantes.
Os cavalos brancos não deixarão de parte a cor.
O mundo continuará a chamar-se Terra (antes que se enterre).
E o pior dos seus defeitos será a existência de oráculos.
17.9.21
A armadilha da simpatia
Ouço uma mulher afegã dizer que agora os talibans já falam inglês e são mais cuidados com as relações públicas (podendo-se aferir que os talibans se recondicionaram e são corteses e educados). O mundo ocidental, que sabe dos pergaminhos dos talibans, está em polvorosa. E desconfia.
Mas não é a geopolítica, nem a falência das potências que tutelam a democracia e os direitos humanos, ou a barbárie iminente, ou a condescendência patética de radicais que parecem peixes fora do aquário por viverem no mundo ocidental, não é nada disso que (agora) interessa. Ouço outra vez as palavras da mulher afegã, transidas de medo e de desconfiança. Dão a entender que os talibans recondicionados são um disfarce do que são em pose genuína. Outra vez: não interessa adivinhar o futuro, ou as intenções de outras pessoas (sejam os talibans ou outras quaisquer).
As palavras da mulher afegã levam a refletir como a simpatia é tão fácil e pode ser um imenso logro. Podemos disfarçar a simpatia para cativar a simpatia dos outros. Podemo-lo fazer por diversos motivos. Por querermos que os outros nos tenham como pessoas simpáticas, pois é de bom tom transitar pelas avenidas onde floresce a simpatia. Por querermos cair nas boas graças dos outros só para deles obtermos uma contrapartida, que, assim que é obtida, embainha o rosto da antipatia (afinal, a genuína têmpera). Ou por sabermos que o passaporte da convivência moderna exige um módico de simpatia, sob pena de sermos arrastados para um canto onde são isolados os párias, os misantropos exibidos como desexemplos.
A simpatia assim encenada é o presságio de um cataclismo social. As pessoas vestem a máscara da simpatia, desembrulham o seu melhor sorriso, ensaiam a cooperação e a boa vontade. Fica a pairar a impressão de que o paraíso não anda longe. Todavia, as pedras que amiúde se descobrem na engrenagem são a prova da vulnerabilidade a que somos expostos quando confiamos na simpatia. O sorriso cansativamente fácil, de orelha a orelha e com todos os dentes à mostra, de que as majoretes televisivas são o protótipo, é um sorriso fácil e cansativo que esconde o que se esconde sob o verniz que é o passaporte de um logro: aquilo que não somos.
Na hora em que o verniz estilhaça e a simpatia se dissolve, fica à mostra a genuína têmpera. Enquanto durou, a simpatia cimentou a frágil confiança e a sensação de que todos podem contar com todos. Como é amplamente sabido, da arqueologia da humanidade e das profundezas da filosofia, os outros são o inferno. A simpatia, uma arma dirigida ao exterior (ao outro), é um disfarce – e como os disfarces, efémera, condicional e astutamente perigosa.
16.9.21
A matança dos desterrados
Um colibri esbraceja sobre o forte que encima a cidade. Ouviu dizer que o forte é a morada de presos, os desterrados que não encontraram acolhimento nas convenções. O colibri, que se gaba de voar com o beneplácito da liberdade, estranha o aprisionamento dos desterrados. O colibri não sabe o que é um desterrado.
Um dos desterrados consegue ver, desde a cela, o colibri a esvoaçar sobre o forte. Ao início, não presta atenção – seria mais uma ave a voar arbitrariamente sobre o lugar e depressa iria para algures, pois o forte não é paisagem que mereça contemplação. Desceu a cabeça sobre as pedras encardidas que perfazem o chão da cela. Demorou-se nas rugas das pedras ancestrais, como se nelas buscasse meio de matar o tempo (que raio de expressão, concedeu). Quando levantou o olhar e o dirigiu através da janela da cela, o colibri continuava o voo estático sobre o forte. O desterrado sentiu a pulsão da inveja, da liberdade do colibri que ele não podia fruir. Depressa fez marcha-atrás. Um desterrado não foi feito para tirar partido da liberdade condicional que é a mortalha que esconde uma opressão em silêncio.
As vozes, em surdina, narram a matança dos desterrados. A matança em sentido figurado, que a pena de morte foi banida (um módico de civilização, para disfarçar o resto da incivilidade). Nenhum dos desterrados pediu para assim ser considerado. O libelo foi arbitrário. O julgamento, premeditado e com resultado conhecido à partida. Os desterrados são o equívoco da liberdade eufemística que se estende pelo mapa afora. O regime suporta as liberdades. Com condições. Os arautos do regime não entendem o logro: por imporem condições à liberdade são os mandatários do seu sequestro. Os dissidentes não têm lugar. São abjurados como desterrados.
A matança dos desterrados é uma metáfora, todavia mortífera. A sua constrição no forte é um assassínio de carácter. E, contudo, os desterrados não são as maiores vítimas. São os algozes, que negam em si próprios o que juram defender, numa intencionalidade disfarçada.
15.9.21
O que valemos?
(Como se fosse o excerto de uma peça de teatro)
- O padre estava a terminar a homilia. Depois de articular o dogma da omnipotência de deus e a correlativa fragilidade das pessoas, dirige-se à audiência, disparando uma pergunta de retórica: “o que valemos?”
- A igreja, e os seus intérpretes, não têm remédio. O que valemos? O que valemos?!
(A repetição da pergunta, que não fora apenas de retórica, foi mais incisiva, soletrando cada sílaba, como se estivesse a sublinhar cada palavra.)
- É uma interrogação com resposta encomendada. Para legitimar o abismo entre um deus perfeito e as pessoas que vegetam na sua profunda imperfeição. Tanto abismo é propício à exaltação de deus e à humilhação das pessoas. Um crente poderia atestar ser este um diagnóstico exagerado; contraporia que não se trata de humilhar as pessoas, antes de as trazer pela trela da humildade, na sua interminável servidão perante deus. Eu digo que um deus assim (ou quem é seu intérprete) é o pior inimigo das pessoas. Deus é perfeito e essa perfeição é a prova de todas as nossas fragilidades. Devemos-lhe tudo o que em nosso perímetro reputamos de bom. O que de mau acontece é produto das nossas ações, delimitadas pelas fraquezas em que nos debatemos. É como se em nós habitassem dois hemisférios. Um, onde se congemina a positividade das almas, de que deus é credor total. O outro, em que medra a nossa profunda imperfeição, que se deve às nossas ações, o produto perfeito da nossa fragilidade. Talvez o mal seja de um deus que foi interpretado desta forma. Ou apenas de quem assim o interpreta.
- Que mal tem a introspeção? Não tens desses momentos heurísticos, em que procuras entender quem és e chegas à conclusão das tuas imperfeições e fragilidades?
- Não recuso a introspeção. Considero-me o meu maior crítico. Mas não preciso da tutela de uma entidade divina, ou da mediação de quem se diz seu tradutor, para povoar o meu pensamento. Não aceito ser tremendamente frágil como antítese de um deus perfeito e nesse abismo ser edificada a subalternização da pessoa. Um deus destes não é bondoso. Amesquinha a pessoa, com o seu consentimento. Paradoxalmente, um deus destes aproxima-se dos niilistas e dos que navegam no pessimismo antropológico (julgo que estes não ficarão confortáveis com a comunhão de barricada). As pessoas são o que são. Uma interminável fonte de erros, tragédias, passos em falso, lições desaprendidas, escolhas que parecem talhadas para o desabamento, arrependimentos. Mas são o produto da sua vontade. Os que sentem o perpétuo bafo de deus e a sua perfeição imaculada acabam por ser levados à inevitabilidade da sua frágil condição. O que não seria contraproducente, não fosse o abismo propositado que se abre entre deus e as pessoas. Esse abismo é usado para perpetuar a servidão das pessoas perante deus. E para justificar a perfeição de deus. A sua admiração a deus é cimentada na imensa imperfeição que exige a indulgência divina. Parece que temos de ser apenas enquanto deus é o nosso mecenas. A vontade própria é o veneno que nos atira para a fragilidade de que somos reféns. O que está errado: a fragilidade é-nos inata. Apesar de deus ou dos seus intérpretes.
- O que concluis, então?
- Que um deus perfeito não se liberta da imperfeição que é depender da imperfeição das pessoas. Eis a prova da perfeição das pessoas: elas sabem que são como a fragilidade da mais fina porcelana.
14.9.21
Passe-partout
Os edifícios envelhecem. Suas são as rugas do tempo, as arestas vividas a cada contratempo sopesado. Dizem que as rugas dos edifícios são um viveiro de charme. Na medida certa: passando o limiar em que à mostra fica o farol da decadência, os edifícios contaminam a cidade com a sua senescência. Precisam de emendas que os extraiam a um prazo de validade.
Dirija-se o olhar para um estaleiro onde nascem embarcações e outras, já com muitas milhas náuticas no bojo, são sujeitas ao rejuvenescer possível. A madeira por polir nas primeiras não atrai o olhar. A madeira gasta, com cicatrizes que o mar deixou como seu selo, convida o olhar dos transeuntes. Perguntarão, talvez, que mares foram demandados por aquelas embarcações que descansam nas mãos dos artesãos (um lugar-comum dos observadores de embarcações). Encantar-se-ão com a usura que os mares deixaram na pele da embarcação. Talvez se esses olhares forem ao estaleiro uns meses após terão a sorte de ver o estado rejuvenescido da embarcação. As loas serão todas para os artesãos. A embarcação, quase a ser lançada às águas mansas do rio, terá um rosto novo, as rugas disfarçadas pela alquimia dos artesãos e pela tinta iridescente que empresta uma vivacidade tal que até parece que a embarcação perde a virgindade ao tomar contacto com o rio.
Os olhos retêm na órbita da memória imagens destas. Imagens que são aparatosas. Por isso ganham um lugar cativo. As memórias são como o passe-partout que adeja no tempo enquanto ele é imorredoiro – enquanto rima com uma vida que tem existência. Só assim as memórias não se expõem às rugas que envelhecem o seu tutor. O passe-partoutatrasa a senescência de quem tem memórias. É um domador do esquecimento, como um medicamento que impede um efeito danoso no organismo.
Num epitáfio, sobram os passe-partout. Quem deles foi mecenas já não os pode instruir. Mas eles ficam como memória futura que ultrapassa uma vida extinta. Ao contrário dos edifícios que se eternizam e das embarcações que não se cansam de sulcar os mares, ou por eles não são abatidas.
13.9.21
A metamorfose do curto prazo
Um sentido para o efémero: é pela partitura que se colhe o instinto que leva vencimento sobre o demais. Hedonistas de franca cepa não se escondem do efémero. Dizem de sua justiça: pois se amanhã ninguém sabe se andamos por cá. Navegam por estima. Aproveitam as marés, um sortilégio vertido nos códigos cifrados que são a exegese das marés.
Do curto prazo reza um interminável somatório. Desenganem-se os tolos que alinham pela embriaguez da planificação: qualquer prazo que não seja curto perdeu o prazo de validade antes do tempo. Esgota-se na sua simples ideia. Não são os dotes de prestidigitação que arrumam o sentido de um prazo que não seja curto. Ao contrário dos anátemas vulgarizados no tempo corrente, a glorificação do curto prazo não equivale a vistas curtas. É o reconhecimento da matéria intangível que é o prazo que ultrapassa o efémero.
Às vezes, a sucessão de curtos prazos, desde que dotada de coerência interna, totaliza um prazo que supera o efémero. Os que glosam a sensatez que se supera ao curto prazo encontram aí uma prova de como o efémero não tem identidade própria: o seu somatório transfigura-o em médio, porventura em longo prazo. A confusão volta a tomar conta do palco em que se movem as pessoas. Deixam de identificar a fronteira nítida (assim o julgavam) que separa o curto prazo dos prazos que vão para além do efémero.
Os hedonistas cavalgam no dorso do efémero. Inspiram-se nessa liberdade. Protestam a inocência quando os outros esbracejam a sua frivolidade. Os que se lhes opõem estão reféns de uma servidão que dissolve a vontade que é a paráfrase do efémero. Contrariando os seus opositores, os hedonistas reclamam o melhor conhecimento da finitude da vida. Ela é o verso acabado da finitude. Convoca o seu sentido efémero, a constante que atravessa a linha do tempo que separa o parto da sepultura.
Aos que pretendem a transfiguração do curto prazo numa dimensão de que invocam o palpável, os hedonistas contrapõem que o prazo que vai além do curto é que se transfigura. Pois mesmo no somatório de instantes que compõem a tela do prazo médio, ele é, por definição, uma soma de curtos prazos alinhados com uma determinada coerência.
O efémero não perde a identidade. A dimensão que se opera no cúmulo de muitos efémeros é que se torna a variável dependente.
10.9.21
Dança das cadeiras
Chegava sempre antes dos outros ao escritório. Não conseguia resistir à pulsão de trocar de cadeiras. Era uma superstição do avesso. Nada a confirmava. Com o passar do tempo e a rotina que se instalara, apostava contra si mesmo quando o primeiro dos outros daria conta que a sua cadeira fora trocada.
A seu favor, as cadeiras eram indistinguíveis. Uma ou outra estava mais coçada – porventura denunciando, as menos coçadas, os que são mais ausentes do escritório; ou apenas mostrando quanto se roçam as pessoas contra as cadeiras durante um dia de trabalho. Mesmo esse traço de identidade das cadeiras se diluíra com a repetição do jogo. Se as cadeiras eram trocadas com assiduidade, elas deixavam de ter uma pertença fixa. Eram cadeiras nómadas, desmentindo o seu estrutural sedentarismo.
Não se podia dizer que estas eram cadeiras fiéis. Andavam sempre a mudar de pertença, a serem sujeitas a um cóccix sempre diferente. A culpa não era das cadeiras, que não têm vontade própria e não podem escolher o cóccix que melhor repousa nelas (nem podem impedir a mudança para outra secretária). As cadeiras ficavam à mercê da extravagância do funcionário que chegava sempre antes dos outros. Os outros também não sabiam que a poligamia das cadeiras estava instalada. Se soubessem, fariam um pé de vento, argumentando que era um atentado contra a higiene? Ou protestariam com convicção, mas sem argumentos, para esconderem o triunfo interior da superstição?
Um dia, alguém madrugou mais cedo. Não foi ele o primeiro a chegar ao escritório. Não pôde fazer a dança das cadeiras, interrompendo a rotina iniciática do dia. Ele é que ficou sobressaltado. Não sabia se a combinação de elementos jogaria a desfavor porque não pôde fazer a dança de cadeiras. Ele era o único supersticioso. Temeu pelo dia. Pelo dia fora. Não conseguiu arranjar a concentração que precisava para as tarefas do dia.
Os outros estranharam o seu sobressalto. Perguntaram se estava doente, ou apenas maldisposto. Não era habitual que ele, tão discreto, ostentasse tanta inquietação. As cadeiras não acusaram a dança que não aconteceu, porque foram extraídas ao seu estrutural sedentarismo. Não era desta dança que os outros precisavam. Eles precisavam de liberdade de espírito para não serem contagiados pela inquietação daquele que não se libertava das algemas que tinha inventado, para si mesmo.
Ficou provado que os cóccix não estranham o assento. Indiferentes à dança das cadeiras, passaram ao lado da superstição fútil. Outras fossem as danças... – poderiam resumir os outros, se tivessem conhecimento da dança de cadeiras que se finou naquele dia.
9.9.21
Os óculos que não precisam de nariz
A ciência cavernal não se impunha aos olhos apenas desatentos. Era nos seus interstícios que a quimera se jogava. Só um punhado de eleitos (eles próprios não hesitando em se verem como predestinados) arrumavam os mistérios que se diziam insondáveis. A presença dos demais, longe da erudição necessária, não se afugentava.
Contudo, chega a altura em que os mais eruditos se libertam das amarras das torres de marfim. Enamorados pelo aplauso público, desassoreiam a ciência hermética e provam que ela pode ser decifrada, com a sua prestimosa ajuda. Dantes anónimos, os seus rostos povoam o espaço público e peroram com a contundência do conhecimento de que se dizem embaixadores diletos. A sua função é fazerem-nos acreditar que podemos colocar uns óculos que não precisam de nariz.
Retiram toda a tralha complexa que enxameia a sua ciência. Trazem-na até ao comum dos mortais, que depressa se entroniza na condição de quase perito; afinal, os óculos nem precisam de assentar nos narizes, o que prova a democraticidade da ciência – quando as convenções são desafiadas, triunfa a democracia.
Não tarda a fazerem-se ouvir as vozes populares que denunciam o embuste da ciência quando ela estava fechada nas torres de marfim. Com a ajuda dos peritos sedentos de um banho público, a ciência banaliza-se. Daí os óculos que nem precisam de nariz. Os não eruditos, agora quase tão eruditos como os genuinamente eruditos, são os arquitetos da ciência trivializada. A gula dos cientistas que se desexilaram das inacessíveis torres de marfim deixou-os à mercê da gula de sinal contrário dos populares. Agora, todos acreditam que os óculos assentam sem precisarem de narizes. Ainda não perceberam (eruditos e aspirantes a sê-lo) que o desmentido da anatomia costuma estar alinhada com uns contratempos sérios.
A ciência, em estado puro, continua incólume. Ela é feita da sua circunstância. Não cede aos caprichos narcisistas de peritos que já devem percebido que é mau conselho a convivência íntima com os populares e a banalização da complexidade.
8.9.21
As coisas que não têm sentido e o seu sentido implícito
De acordo com a teoria geral dos paradoxos, há coisas que não reclamam um sentido ou uma lógica. São as coisas que escapam à teorização de tudo. Estão sob a lógica perpendicular que atravessa a inteligibilidade das coisas. Desse modo, enfeudam-se na lógica das coisas sem lógica.
Perante as coisas sem sentido, as pessoas desistem de encontrar um sentido. Por definição, estabelecida em convenções que regem os comportamentos, são coisas a que não tem utilidade encontrar um sentido, porque esse sentido não faz parte da sua identidade. É da sua natureza não terem uma natureza. São terra de ninguém. Visíveis ou não, não se aceitam sob o beneplácito de uma lógica. As pessoas desistem delas. Não precisam que as pessoas se detenham nelas porque são ilógicas. E as pessoas só partem em demanda do que possa encerrar uma lógica.
Mas até as coisas que não têm sentido acabam por se reconciliar com um sentido. Nem que esse sentido seja a simples constatação da ausência de um sentido. Esse não sentido integra o sentido das coisas sem sentido. Elas acabam por intuir um sentido, ainda que não haja quem consiga apresentar as suas costuras. As pessoas andam mal se desistirem das coisas que as convenções impuseram como ilógicas. O seu não sentido corporiza a natureza própria destas coisas.
É errado desistir das coisas sem sentido. Será empreitada hercúlea definir as costuras das coisas que escapam à lógica das coisas que têm sentido. Isso não pode determinar uma capitulação. Uma impossibilidade hoje não é uma garantia perpétua de impossibilidade. Muito do avanço da espécie é feito de descobertas que retiram das trevas uma determinada coisa. Esse pode ser o destino de qualquer coisa que hoje pertença às coisas sem sentido. É o módico do seu sentido. Um sentido potencial, porque os impossíveis só o são enquanto forem impossíveis. Não é uma condição que se ateste na sua perenidade. O impossível de hoje pode mudar de trincheira, tornando-se amanhã um possível.
Este sentido potencial impede que as coisas sem sentido não sejam cuidadas como podendo ter um sentido potencial no porvir. Esse é o seu sentido, implícito nas varandas do tempo que se abrem com as páginas vindouras ainda por revelar. A cegueira das pessoas, ou a sua insensibilidade perante as coisas sem sentido, é uma capitulação, uma fragilidade de quem assim se desentrega delas.
7.9.21
Não há perguntas sem resposta (até as que não têm resposta)
Às perguntas refrangentes, o que fazemos? Elas ecoam no vasto vale das dúvidas e não há quem proponha uma resposta. Sem demora, dedos acusadores erguem-se por causa do silêncio: uma pergunta que ficou deserta de resposta equivale a uma fragilidade; o perguntante não soube dizer a resposta e essa é a prova da sua ignorância. Era preferível não ter elaborado a interrogação.
Tamanhas objeções, que têm ressonância a um implacável escrutínio, podem inibir as perguntas. Pois se há de haver alguém que anota cuidadosamente as perguntas e inspeciona, com igual critério, os lugares onde deviam aparecer as respostas, os perguntantes podem temer a sindicância porque não se pode pôr de parte a probabilidade de formular uma interrogação que não encontra resposta.
O que os meticulosos examinadores de perguntas desconhecem é que não existe uma regra, nem sequer consuetudinária, que obrigue a lavrar resposta por cada pergunta formulada. O exercício indagativo não é um percurso que leva necessariamente a respostas. Quantas perguntas não têm resposta e, contudo, não podem deixar de ser feitas? Ou, por outra: quantas perguntas deixariam de ser feitas por receio de não haver respostas? E quanto se perderia por travar a ascensão dessas perguntas?
As perguntas que não quadram com respostas não ficam órfãs. A ausência de resposta é a resposta a essa pergunta. O conhecimento não é infinito, tal como a capacidade de entendimento das variáveis que fruem numa pergunta. Se não se pudesse elaborar perguntas porque a matéria é invasiva do conhecimento, é como se houvesse uma mordaça a impedir a curiosidade do saber. Seria uma censura requintada, diligentemente vertida para aqueles domínios em que à formulação da pergunta pode não corresponder uma resposta. Seria o fim da filosofia. É preciso denunciar os que seguem o lema “não faças perguntas a que não sabes dar resposta”.
Se se perguntar algo e no silêncio houver resposta, esse é um silêncio comprometido: o silêncio constitui-se na resposta que equivale à não resposta. Uma não resposta (ou a ausência de resposta) também é uma possível resposta a uma pergunta.
6.9.21
O bodo perdido
O primeiro prémio nem sempre encontra um contemplado. Quando encontra, é um prémio singular. Desta vez foi distribuído por três apostadores. Vinte milhões para cada um (descontado o prémio que cabe ao fisco).
Um dos felizardos exulta ao saber que acertou na combinação de algarismos sorteada. Começa a fazer contas à vida, o destino que há de dar a (números redondos) sessenta milhões. Anota mentalmente as incumbências: a quem se destina a generosidade indeclinável, onde deixar uma considerável fatia do bodo em forma de investimento, os luxos imediatos (o apelo do consumo, desmentindo o lastro ideológico, num ápice desfeito a zero), outras extravagâncias alinhavadas em sonhos meticulosamente inventariados. Começam a ser tantas as incumbências que precisa de um papel para não ficarem esquecidas.
No dia seguinte, é notificado do bodo. Vinte milhões. Reage instintivamente: “só pode ser um equívoco. Não são vinte milhões. São sessenta milhões. A diferença não é de somenos.” Ato contínuo, protesta a informação e atreve-se a corrigi-la: “não são vinte milhões; são sessenta milhões.” Na célere volta do correio, o esclarecimento: “o senhor apostador foi um dos três felizardos que acertaram na combinação vencedora. O quinhão do prémio a si destinado é de vinte milhões.”
Sentiu o chão a fugir sob os pés. Sempre eram vinte milhões, em vez de sessenta milhões. Se o lastro ideológico não tivesse ficado à mercê da erosão dos números (dos números que sempre vituperou), manteria a celebração (ou, se a fidelidade às ideias ainda fosse o cimento do comportamento, faria cálculos para distribuir pelos necessitados). Assim como assim, aumentar o património em vinte milhões de um dia para o outro só acontece na raridade das probabilidades típicas do jogo.
Não conseguiu reprimir o enfado, passando por cima dos sepultados pergaminhos da ideologia de outrora. Não se conformava com a perda de quarenta milhões. A soberba contaminou o raciocínio (diriam os pragmáticos). Em vez de exultar com a engorda inesperada de vinte milhões, lamentava o custo de oportunidade dos quarenta milhões que poderia ter embolsado se não estivesse em má companhia no apuramento da combinação de números premiada (diriam os avarentos, em defesa do infeliz contemplado).
A angústia da ambição fervida na tentação dos números grandes atraiçoou o premiado (é a conclusão dos pragmáticos). Cego pela faceta de si mesmo que não conhecia, só lhe apetecia descobrir a identidade dos outros dois premiados. Só por curiosidade, sem deixar vir ao de cima outras intenções delituosas.
3.9.21
Espelho baço
A voz esconde-se dos demónios que enxameiam a noite. Esconde-se em labirintos vagos, sem lugar determinado. Pudessem as palavras libertar-se dos medos estruturais e os espelhos incensados seriam rútilos, os rostos decantados através dos vitrais translúcidos.
Mas não é fácil descobrir as coordenadas do esconderijo. Um esconderijo não é esconderijo por acaso. Não se oferece ao olhar atento sem uma meticulosa observação. Um baldio algures embasa o esconderijo, um lugar ao relento, sem paredes nem teto. Apenas com um espelho. Um espelho ao início baço. A demanda é desfazer as impurezas que embaciam o espelho. Arremessá-las para os canteiros onde jazem os despojos que perderam serventia.
O espelho serve como mnemónica do passado. Não deixa cair em saco roto os vestígios desse passado. Por mais que o passado desimporte para a bússola do tempo válido, ele não pode cair na deslembrança. Antes de avançar pelos interstícios do espelho, o desafio é não habilitar o passado a tornar-se contumaz. Deve ser chamado a palco quando se exige a sua presença para compreender as arestas que colonizam a nitidez do espelho. Sem a sua exegese, é impossível desembaciar o espelho.
Pode-se pensar que a empreitada é tangente à depuração de todas as impurezas que tornam o espelho baço. Não se confunda a empreitada com a ambição da pureza. As arestas são sempre figura de corpo presente. Ao desembaciar o espelho não se intui a total perspicuidade. As fragilidades são uma impressão digital, inapagável. Ao desembaciar o espelho, removem-se as impurezas que são como gorduras excessivas. O espelho nunca ficará com a pureza da água de nascente. Para que o desembaciar do espelho não seja uma farsa.
Desenganem-se os engenheiros que professam a religião das ciências exatas: o espelho que espera por ser menos baço não se filia nessa trincheira. Serão sempre os intérpretes do processo a determinar o resultado final. Desembaciar o espelho é uma empreitada à mercê dos cânones subjetivos. Cada um saberá, à saída do esconderijo, se o espelho foi desembaciado a preceito. A cada um competirá saber, em memória puramente íntima, se a empreitada foi um logro ou se tocou as sinetas da glória.
2.9.21
Palavras cruzadas (short stories #361)
Tirem-se à sorte as palavras entre a sua constelação: há palavras gentis, palavras que aquecem as mãos, palavras ditas com o avesso do seu sentido, palavras enigma, palavras logro (porque não significam o que o seu portador intui). Joguem-se as palavras no tabuleiro do futuro, onde só há palavras por dizer, palavras à espera de serem ditas. Essas palavras não têm uma ordenação. Jogam-se ao acaso, atiradas sem critério para um poço onde são matematizadas na oposição de equações diligentes. É como se houvesse uma roleta russa e os circunstantes estivessem à espera das palavras saídas em lotaria de ocasião. Esperam: pode ser que do amontado de palavras surta um poema, ou um manifesto, ou apenas um texto sem outra razão que não seja o imperativo de não guardar as palavras numa parede de silêncio. As palavras podem ser cruas. Podem sair da boca atemorizadas pelos efeitos sísmicos que podem provocar em quem as ouvir – em quem for seu destinatário. Ou podem apenas ser um inventário anónimo, acastelando-se umas nas outras segundo um critério desordenado. Há palavras que procuram significados. Outras que são janelas entreabertas para avenidas por descobrir. Outras, ainda, que selam os rostos desembainhados pelo esgotamento da matéria sensível. O vocabulário admitido a concurso é esse inventário espiolhado ao acaso, as palavras dele constantes cruzadas no descritério empossado. E os circunstantes jogam-se a concurso: rivalizam no conhecimento dos significados, esgrimem sinónimos, antepõem figuras de estilo – concorrem na erudição (tão fátua). Até que, exauridas, as palavras fogem da boca e refugiam-se no silêncio. Perdem serventia, de tanto serem acossadas pela cacofonia. Há palavras que se dizem no silêncio. As palavras estruturais que descrevem um rosto, um estado de espírito, uma promessa para memória futura. Também são palavras cruzadas. Como o tempo por revelar, presos à incógnita que sopesa os braços.
1.9.21
Por mais água que passe, a ponte é sempre a mesma
Não inventem fórmulas químicas só para provarem que a água que corre sob a ponte é diferente. Não venham a palco certificar a diferente linhagem do rio que se abriga sob a ponte, dizendo que se oferece a diferentes cores consoante a luz que o dia expõe. Não digam que o rio que visita fugazmente a ponte é diferente do rio que ontem a visitou. Pois a ponte é sempre a mesma e ela, centrípeta, é que julga o rosto do rio de que é hospedeira.
Nas memórias guardadas em fotografias antigas há espaço para dias sombrios com um rio afluente que quase beijava as arcadas da ponte. Entretanto, o engenho do homem levantou barragens que domesticaram o rio. Agora, por mais que chova, as cheias que ultrapassem o esperado são apenas um leve presságio do que foram no passado. O rio nunca mais cresceu até quase beijar as arcadas da ponte. E as pessoas especulam: mesmo que o rio ousasse transbordar como nunca aconteceu, mesmo que excedesse a ponte, a ponte não deixaria de ser a ponte centrípeta que as pessoas conhecem.
A cidade (dizem) é dominada pela presença do rio. Enformada nas falésias que se encaixam no caudal, a cidade é um levantamento de íngremes subidas e descidas que a trazem até bordejar o rio. A ponte cerze os dois lados que se veem desde as margens. Se as pessoas não andassem distraídas, dariam conta que a ponte é merecedora da toponímia máxima. Sem ela, os dois povoados viveriam de costas um para o outro, no máximo ambicionando a opulência de se verem desde as margens.
A ponte é que devia constar nos símbolos distintivos da cidade. E, todavia, ela merece apenas um lugar discreto nas imagens que povoam o imaginário dos habitantes. O rio muda sempre que o tempo se excede na sua variegada feição. Dir-se-ia: o rio tem os nomes diferentes dados por cada dia. Mas a ponte é sempre a mesma, os seus alicerces submersos nas águas do rio sem serem corroídos. É a ponte que serve de cais onde o rio (e toda uma cidade) se ancoram ao devir. Pois o futuro será diferente, mas a ponte não deixará de ser a mesma, o esteio que oferece o degrau estrutural onde a cidade (e o rio) demandam fundação.