16.9.21

A matança dos desterrados

Nick Cave & Warren Ellis, “White Elephant” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=sJoOO7ATI48

Um colibri esbraceja sobre o forte que encima a cidade. Ouviu dizer que o forte é a morada de presos, os desterrados que não encontraram acolhimento nas convenções. O colibri, que se gaba de voar com o beneplácito da liberdade, estranha o aprisionamento dos desterrados. O colibri não sabe o que é um desterrado.

Um dos desterrados consegue ver, desde a cela, o colibri a esvoaçar sobre o forte. Ao início, não presta atenção – seria mais uma ave a voar arbitrariamente sobre o lugar e depressa iria para algures, pois o forte não é paisagem que mereça contemplação. Desceu a cabeça sobre as pedras encardidas que perfazem o chão da cela. Demorou-se nas rugas das pedras ancestrais, como se nelas buscasse meio de matar o tempo (que raio de expressão, concedeu). Quando levantou o olhar e o dirigiu através da janela da cela, o colibri continuava o voo estático sobre o forte. O desterrado sentiu a pulsão da inveja, da liberdade do colibri que ele não podia fruir. Depressa fez marcha-atrás. Um desterrado não foi feito para tirar partido da liberdade condicional que é a mortalha que esconde uma opressão em silêncio.

As vozes, em surdina, narram a matança dos desterrados. A matança em sentido figurado, que a pena de morte foi banida (um módico de civilização, para disfarçar o resto da incivilidade). Nenhum dos desterrados pediu para assim ser considerado. O libelo foi arbitrário. O julgamento, premeditado e com resultado conhecido à partida. Os desterrados são o equívoco da liberdade eufemística que se estende pelo mapa afora. O regime suporta as liberdades. Com condições. Os arautos do regime não entendem o logro: por imporem condições à liberdade são os mandatários do seu sequestro. Os dissidentes não têm lugar. São abjurados como desterrados.

A matança dos desterrados é uma metáfora, todavia mortífera. A sua constrição no forte é um assassínio de carácter. E, contudo, os desterrados não são as maiores vítimas. São os algozes, que negam em si próprios o que juram defender, numa intencionalidade disfarçada.

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