6.9.21

O bodo perdido

Ólafur Arnalds, “3055”, in https://www.youtube.com/watch?v=K6u5D-5LWSg

O primeiro prémio nem sempre encontra um contemplado. Quando encontra, é um prémio singular. Desta vez foi distribuído por três apostadores. Vinte milhões para cada um (descontado o prémio que cabe ao fisco).

Um dos felizardos exulta ao saber que acertou na combinação de algarismos sorteada. Começa a fazer contas à vida, o destino que há de dar a (números redondos) sessenta milhões. Anota mentalmente as incumbências: a quem se destina a generosidade indeclinável, onde deixar uma considerável fatia do bodo em forma de investimento, os luxos imediatos (o apelo do consumo, desmentindo o lastro ideológico, num ápice desfeito a zero), outras extravagâncias alinhavadas em sonhos meticulosamente inventariados. Começam a ser tantas as incumbências que precisa de um papel para não ficarem esquecidas. 

No dia seguinte, é notificado do bodo. Vinte milhões. Reage instintivamente: “só pode ser um equívoco. Não são vinte milhões. São sessenta milhões. A diferença não é de somenos.” Ato contínuo, protesta a informação e atreve-se a corrigi-la: “não são vinte milhões; são sessenta milhões.” Na célere volta do correio, o esclarecimento: “o senhor apostador foi um dos três felizardos que acertaram na combinação vencedora. O quinhão do prémio a si destinado é de vinte milhões.”

Sentiu o chão a fugir sob os pés. Sempre eram vinte milhões, em vez de sessenta milhões. Se o lastro ideológico não tivesse ficado à mercê da erosão dos números (dos números que sempre vituperou), manteria a celebração (ou, se a fidelidade às ideias ainda fosse o cimento do comportamento, faria cálculos para distribuir pelos necessitados). Assim como assim, aumentar o património em vinte milhões de um dia para o outro só acontece na raridade das probabilidades típicas do jogo. 

Não conseguiu reprimir o enfado, passando por cima dos sepultados pergaminhos da ideologia de outrora. Não se conformava com a perda de quarenta milhões. A soberba contaminou o raciocínio (diriam os pragmáticos). Em vez de exultar com a engorda inesperada de vinte milhões, lamentava o custo de oportunidade dos quarenta milhões que poderia ter embolsado se não estivesse em má companhia no apuramento da combinação de números premiada (diriam os avarentos, em defesa do infeliz contemplado). 

A angústia da ambição fervida na tentação dos números grandes atraiçoou o premiado (é a conclusão dos pragmáticos). Cego pela faceta de si mesmo que não conhecia, só lhe apetecia descobrir a identidade dos outros dois premiados. Só por curiosidade, sem deixar vir ao de cima outras intenções delituosas.

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