23.9.21

O sonho dos sonhadores

The Cure, “The Last Day of Summer”, in https://www.youtube.com/watch?v=iNiUG33rSyY

O navio vagaroso desbrava o mar sem terra por perto. O navio parece fantasma. Talvez seja da noite funda e a essa hora os marinheiros estão recolhidos. Mas não é noite funda. Não tem relógio, mas diria tratar-se de uma hora qualquer entre o estertor da manhã e o alvor da tarde. Uma leve brisa descompõe o chão do mar, desenhando uma suave coreografia de ondas.

Desce ao convés. A ferrugem emaranhada no ferro dos alicerces do navio era testemunha da solidão. Percorre os estreitos corredores. As portas dos camarotes estão todas abertas e nem vivalma. Na casa das máquinas, apenas o intenso cheiro a óleo e o ruído tonitruante dos motores que fazem avançar o navio à velocidade de cruzeiro. No camarote do comandante, as garrafas de rum e de brandy diligentemente alinhadas numa estante sobre a secretária telintam, embaladas pela coreografia do mar. Continua calado, a rimar com o silêncio estrutural. Quis falar, quis fazer a pergunta que se impunha (“está aí alguém?”). Refreou a pulsão. Tinha medo de acordar fantasmas escondidos nos interstícios do navio. Tinha medo que os fantasmas colonizassem o navio fantasma.

Não entendia como o navio podia avançar à velocidade de cruzeiro se ninguém o tripulava. Talvez fosse como os aviões, sofisticadamente programados para voarem em piloto automático, os pilotos escrutinando as condições de voo enquanto o avião voa sozinho. Não sabia que isso podia acontecer num navio. O vento passou a soprar com mais força e o mar agitou-se. O navio não perdia a rota (pelo menos, era o que queria acreditar). Se estava em navio automático, haveria de arrimar a um porto. Por mais que demorasse a viagem, que os tanques de combustível não são infinitos. 

Anoiteceu. O silêncio parecia doer mais na companhia da noite. Ao menos o céu renunciara às nuvens e podia apreciar a cintilação do mar de estrelas que se compunha. Não era noite de luar. O vento sossegara. Sobre a mesa improvisada no convés, os restos das rações encontradas na dispensa da cozinha e a garrafa, já meio vazia, de rum. Onde seria o destino? A pergunta foi esmaecendo à medida que foi tomado pela sonolência. Deixou-se dormir. Podia ser que, ao acordar, o navio automático já mostrasse terra à vista, ou um cais acolhedor. 

Antes de adormecer, derramou o resto do rum no mar. Queria manter um módico de sobriedade, para que o rum não embaciasse o sonho do sonhador. Os pés tinham âncora em terra firme. Sonhara com um sonho em que sonhava que estava num navio fantasma, a sonhar. Mas talvez ele fosse o fantasma evidente. Ou um palimpsesto de sonhos.

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