10.9.21

Dança das cadeiras

David Bowie, “Ziggy Stardust” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=G8sdsW93ThQ

Chegava sempre antes dos outros ao escritório. Não conseguia resistir à pulsão de trocar de cadeiras. Era uma superstição do avesso. Nada a confirmava. Com o passar do tempo e a rotina que se instalara, apostava contra si mesmo quando o primeiro dos outros daria conta que a sua cadeira fora trocada.

A seu favor, as cadeiras eram indistinguíveis. Uma ou outra estava mais coçada – porventura denunciando, as menos coçadas, os que são mais ausentes do escritório; ou apenas mostrando quanto se roçam as pessoas contra as cadeiras durante um dia de trabalho. Mesmo esse traço de identidade das cadeiras se diluíra com a repetição do jogo. Se as cadeiras eram trocadas com assiduidade, elas deixavam de ter uma pertença fixa. Eram cadeiras nómadas, desmentindo o seu estrutural sedentarismo.

Não se podia dizer que estas eram cadeiras fiéis. Andavam sempre a mudar de pertença, a serem sujeitas a um cóccix sempre diferente. A culpa não era das cadeiras, que não têm vontade própria e não podem escolher o cóccix que melhor repousa nelas (nem podem impedir a mudança para outra secretária). As cadeiras ficavam à mercê da extravagância do funcionário que chegava sempre antes dos outros. Os outros também não sabiam que a poligamia das cadeiras estava instalada. Se soubessem, fariam um pé de vento, argumentando que era um atentado contra a higiene? Ou protestariam com convicção, mas sem argumentos, para esconderem o triunfo interior da superstição?

Um dia, alguém madrugou mais cedo. Não foi ele o primeiro a chegar ao escritório. Não pôde fazer a dança das cadeiras, interrompendo a rotina iniciática do dia. Ele é que ficou sobressaltado. Não sabia se a combinação de elementos jogaria a desfavor porque não pôde fazer a dança de cadeiras. Ele era o único supersticioso. Temeu pelo dia. Pelo dia fora. Não conseguiu arranjar a concentração que precisava para as tarefas do dia. 

Os outros estranharam o seu sobressalto. Perguntaram se estava doente, ou apenas maldisposto. Não era habitual que ele, tão discreto, ostentasse tanta inquietação. As cadeiras não acusaram a dança que não aconteceu, porque foram extraídas ao seu estrutural sedentarismo. Não era desta dança que os outros precisavam. Eles precisavam de liberdade de espírito para não serem contagiados pela inquietação daquele que não se libertava das algemas que tinha inventado, para si mesmo. 

Ficou provado que os cóccix não estranham o assento. Indiferentes à dança das cadeiras, passaram ao lado da superstição fútil. Outras fossem as danças... – poderiam resumir os outros, se tivessem conhecimento da dança de cadeiras que se finou naquele dia. 

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