17.9.21

A armadilha da simpatia

Bizarra Locomotiva, “Mortuário” (ao vivo no Coliseu de Lisboa), in https://www.youtube.com/watch?v=Pc-lf-pJ-kk

Ouço uma mulher afegã dizer que agora os talibans já falam inglês e são mais cuidados com as relações públicas (podendo-se aferir que os talibans se recondicionaram e são corteses e educados). O mundo ocidental, que sabe dos pergaminhos dos talibans, está em polvorosa. E desconfia.

Mas não é a geopolítica, nem a falência das potências que tutelam a democracia e os direitos humanos, ou a barbárie iminente, ou a condescendência patética de radicais que parecem peixes fora do aquário por viverem no mundo ocidental, não é nada disso que (agora) interessa. Ouço outra vez as palavras da mulher afegã, transidas de medo e de desconfiança. Dão a entender que os talibans recondicionados são um disfarce do que são em pose genuína. Outra vez: não interessa adivinhar o futuro, ou as intenções de outras pessoas (sejam os talibans ou outras quaisquer). 

As palavras da mulher afegã levam a refletir como a simpatia é tão fácil e pode ser um imenso logro. Podemos disfarçar a simpatia para cativar a simpatia dos outros. Podemo-lo fazer por diversos motivos. Por querermos que os outros nos tenham como pessoas simpáticas, pois é de bom tom transitar pelas avenidas onde floresce a simpatia. Por querermos cair nas boas graças dos outros só para deles obtermos uma contrapartida, que, assim que é obtida, embainha o rosto da antipatia (afinal, a genuína têmpera). Ou por sabermos que o passaporte da convivência moderna exige um módico de simpatia, sob pena de sermos arrastados para um canto onde são isolados os párias, os misantropos exibidos como desexemplos. 

A simpatia assim encenada é o presságio de um cataclismo social. As pessoas vestem a máscara da simpatia, desembrulham o seu melhor sorriso, ensaiam a cooperação e a boa vontade. Fica a pairar a impressão de que o paraíso não anda longe. Todavia, as pedras que amiúde se descobrem na engrenagem são a prova da vulnerabilidade a que somos expostos quando confiamos na simpatia. O sorriso cansativamente fácil, de orelha a orelha e com todos os dentes à mostra, de que as majoretes televisivas são o protótipo, é um sorriso fácil e cansativo que esconde o que se esconde sob o verniz que é o passaporte de um logro: aquilo que não somos. 

Na hora em que o verniz estilhaça e a simpatia se dissolve, fica à mostra a genuína têmpera. Enquanto durou, a simpatia cimentou a frágil confiança e a sensação de que todos podem contar com todos. Como é amplamente sabido, da arqueologia da humanidade e das profundezas da filosofia, os outros são o inferno. A simpatia, uma arma dirigida ao exterior (ao outro), é um disfarce – e como os disfarces, efémera, condicional e astutamente perigosa.

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