A voz esconde-se dos demónios que enxameiam a noite. Esconde-se em labirintos vagos, sem lugar determinado. Pudessem as palavras libertar-se dos medos estruturais e os espelhos incensados seriam rútilos, os rostos decantados através dos vitrais translúcidos.
Mas não é fácil descobrir as coordenadas do esconderijo. Um esconderijo não é esconderijo por acaso. Não se oferece ao olhar atento sem uma meticulosa observação. Um baldio algures embasa o esconderijo, um lugar ao relento, sem paredes nem teto. Apenas com um espelho. Um espelho ao início baço. A demanda é desfazer as impurezas que embaciam o espelho. Arremessá-las para os canteiros onde jazem os despojos que perderam serventia.
O espelho serve como mnemónica do passado. Não deixa cair em saco roto os vestígios desse passado. Por mais que o passado desimporte para a bússola do tempo válido, ele não pode cair na deslembrança. Antes de avançar pelos interstícios do espelho, o desafio é não habilitar o passado a tornar-se contumaz. Deve ser chamado a palco quando se exige a sua presença para compreender as arestas que colonizam a nitidez do espelho. Sem a sua exegese, é impossível desembaciar o espelho.
Pode-se pensar que a empreitada é tangente à depuração de todas as impurezas que tornam o espelho baço. Não se confunda a empreitada com a ambição da pureza. As arestas são sempre figura de corpo presente. Ao desembaciar o espelho não se intui a total perspicuidade. As fragilidades são uma impressão digital, inapagável. Ao desembaciar o espelho, removem-se as impurezas que são como gorduras excessivas. O espelho nunca ficará com a pureza da água de nascente. Para que o desembaciar do espelho não seja uma farsa.
Desenganem-se os engenheiros que professam a religião das ciências exatas: o espelho que espera por ser menos baço não se filia nessa trincheira. Serão sempre os intérpretes do processo a determinar o resultado final. Desembaciar o espelho é uma empreitada à mercê dos cânones subjetivos. Cada um saberá, à saída do esconderijo, se o espelho foi desembaciado a preceito. A cada um competirá saber, em memória puramente íntima, se a empreitada foi um logro ou se tocou as sinetas da glória.
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