2.9.21

Palavras cruzadas (short stories #361)

Django Django (feat. Charlotte Gainsbourg), “Waking Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=oTYAFDdpggw

          Tirem-se à sorte as palavras entre a sua constelação: há palavras gentis, palavras que aquecem as mãos, palavras ditas com o avesso do seu sentido, palavras enigma, palavras logro (porque não significam o que o seu portador intui). Joguem-se as palavras no tabuleiro do futuro, onde só há palavras por dizer, palavras à espera de serem ditas. Essas palavras não têm uma ordenação. Jogam-se ao acaso, atiradas sem critério para um poço onde são matematizadas na oposição de equações diligentes. É como se houvesse uma roleta russa e os circunstantes estivessem à espera das palavras saídas em lotaria de ocasião. Esperam: pode ser que do amontado de palavras surta um poema, ou um manifesto, ou apenas um texto sem outra razão que não seja o imperativo de não guardar as palavras numa parede de silêncio. As palavras podem ser cruas. Podem sair da boca atemorizadas pelos efeitos sísmicos que podem provocar em quem as ouvir – em quem for seu destinatário. Ou podem apenas ser um inventário anónimo, acastelando-se umas nas outras segundo um critério desordenado. Há palavras que procuram significados. Outras que são janelas entreabertas para avenidas por descobrir. Outras, ainda, que selam os rostos desembainhados pelo esgotamento da matéria sensível. O vocabulário admitido a concurso é esse inventário espiolhado ao acaso, as palavras dele constantes cruzadas no descritério empossado. E os circunstantes jogam-se a concurso: rivalizam no conhecimento dos significados, esgrimem sinónimos, antepõem figuras de estilo – concorrem na erudição (tão fátua). Até que, exauridas, as palavras fogem da boca e refugiam-se no silêncio. Perdem serventia, de tanto serem acossadas pela cacofonia. Há palavras que se dizem no silêncio. As palavras estruturais que descrevem um rosto, um estado de espírito, uma promessa para memória futura. Também são palavras cruzadas. Como o tempo por revelar, presos à incógnita que sopesa os braços.

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