14.9.21

Passe-partout

Trentemøller, “In the Gloaming”, in https://www.youtube.com/watch?v=iqteum_Z3Kk

Os edifícios envelhecem. Suas são as rugas do tempo, as arestas vividas a cada contratempo sopesado. Dizem que as rugas dos edifícios são um viveiro de charme. Na medida certa: passando o limiar em que à mostra fica o farol da decadência, os edifícios contaminam a cidade com a sua senescência. Precisam de emendas que os extraiam a um prazo de validade.  

Dirija-se o olhar para um estaleiro onde nascem embarcações e outras, já com muitas milhas náuticas no bojo, são sujeitas ao rejuvenescer possível. A madeira por polir nas primeiras não atrai o olhar. A madeira gasta, com cicatrizes que o mar deixou como seu selo, convida o olhar dos transeuntes. Perguntarão, talvez, que mares foram demandados por aquelas embarcações que descansam nas mãos dos artesãos (um lugar-comum dos observadores de embarcações). Encantar-se-ão com a usura que os mares deixaram na pele da embarcação. Talvez se esses olhares forem ao estaleiro uns meses após terão a sorte de ver o estado rejuvenescido da embarcação. As loas serão todas para os artesãos. A embarcação, quase a ser lançada às águas mansas do rio, terá um rosto novo, as rugas disfarçadas pela alquimia dos artesãos e pela tinta iridescente que empresta uma vivacidade tal que até parece que a embarcação perde a virgindade ao tomar contacto com o rio.

Os olhos retêm na órbita da memória imagens destas. Imagens que são aparatosas. Por isso ganham um lugar cativo. As memórias são como o passe-partout que adeja no tempo enquanto ele é imorredoiro – enquanto rima com uma vida que tem existência. Só assim as memórias não se expõem às rugas que envelhecem o seu tutor. O passe-partoutatrasa a senescência de quem tem memórias. É um domador do esquecimento, como um medicamento que impede um efeito danoso no organismo.   

Num epitáfio, sobram os passe-partout. Quem deles foi mecenas já não os pode instruir. Mas eles ficam como memória futura que ultrapassa uma vida extinta. Ao contrário dos edifícios que se eternizam e das embarcações que não se cansam de sulcar os mares, ou por eles não são abatidas. 

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