1.9.21

Por mais água que passe, a ponte é sempre a mesma

Mogway, “How to Be a Werewolf (In Thirty Century Man)”, in https://www.youtube.com/watch?v=GrIRcB0x4iU

Não inventem fórmulas químicas só para provarem que a água que corre sob a ponte é diferente. Não venham a palco certificar a diferente linhagem do rio que se abriga sob a ponte, dizendo que se oferece a diferentes cores consoante a luz que o dia expõe. Não digam que o rio que visita fugazmente a ponte é diferente do rio que ontem a visitou. Pois a ponte é sempre a mesma e ela, centrípeta, é que julga o rosto do rio de que é hospedeira.

Nas memórias guardadas em fotografias antigas há espaço para dias sombrios com um rio afluente que quase beijava as arcadas da ponte. Entretanto, o engenho do homem levantou barragens que domesticaram o rio. Agora, por mais que chova, as cheias que ultrapassem o esperado são apenas um leve presságio do que foram no passado. O rio nunca mais cresceu até quase beijar as arcadas da ponte. E as pessoas especulam: mesmo que o rio ousasse transbordar como nunca aconteceu, mesmo que excedesse a ponte, a ponte não deixaria de ser a ponte centrípeta que as pessoas conhecem.

A cidade (dizem) é dominada pela presença do rio. Enformada nas falésias que se encaixam no caudal, a cidade é um levantamento de íngremes subidas e descidas que a trazem até bordejar o rio. A ponte cerze os dois lados que se veem desde as margens. Se as pessoas não andassem distraídas, dariam conta que a ponte é merecedora da toponímia máxima. Sem ela, os dois povoados viveriam de costas um para o outro, no máximo ambicionando a opulência de se verem desde as margens. 

A ponte é que devia constar nos símbolos distintivos da cidade. E, todavia, ela merece apenas um lugar discreto nas imagens que povoam o imaginário dos habitantes. O rio muda sempre que o tempo se excede na sua variegada feição. Dir-se-ia: o rio tem os nomes diferentes dados por cada dia. Mas a ponte é sempre a mesma, os seus alicerces submersos nas águas do rio sem serem corroídos. É a ponte que serve de cais onde o rio (e toda uma cidade) se ancoram ao devir. Pois o futuro será diferente, mas a ponte não deixará de ser a mesma, o esteio que oferece o degrau estrutural onde a cidade (e o rio) demandam fundação.

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