A ciência cavernal não se impunha aos olhos apenas desatentos. Era nos seus interstícios que a quimera se jogava. Só um punhado de eleitos (eles próprios não hesitando em se verem como predestinados) arrumavam os mistérios que se diziam insondáveis. A presença dos demais, longe da erudição necessária, não se afugentava.
Contudo, chega a altura em que os mais eruditos se libertam das amarras das torres de marfim. Enamorados pelo aplauso público, desassoreiam a ciência hermética e provam que ela pode ser decifrada, com a sua prestimosa ajuda. Dantes anónimos, os seus rostos povoam o espaço público e peroram com a contundência do conhecimento de que se dizem embaixadores diletos. A sua função é fazerem-nos acreditar que podemos colocar uns óculos que não precisam de nariz.
Retiram toda a tralha complexa que enxameia a sua ciência. Trazem-na até ao comum dos mortais, que depressa se entroniza na condição de quase perito; afinal, os óculos nem precisam de assentar nos narizes, o que prova a democraticidade da ciência – quando as convenções são desafiadas, triunfa a democracia.
Não tarda a fazerem-se ouvir as vozes populares que denunciam o embuste da ciência quando ela estava fechada nas torres de marfim. Com a ajuda dos peritos sedentos de um banho público, a ciência banaliza-se. Daí os óculos que nem precisam de nariz. Os não eruditos, agora quase tão eruditos como os genuinamente eruditos, são os arquitetos da ciência trivializada. A gula dos cientistas que se desexilaram das inacessíveis torres de marfim deixou-os à mercê da gula de sinal contrário dos populares. Agora, todos acreditam que os óculos assentam sem precisarem de narizes. Ainda não perceberam (eruditos e aspirantes a sê-lo) que o desmentido da anatomia costuma estar alinhada com uns contratempos sérios.
A ciência, em estado puro, continua incólume. Ela é feita da sua circunstância. Não cede aos caprichos narcisistas de peritos que já devem percebido que é mau conselho a convivência íntima com os populares e a banalização da complexidade.
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