(Como se fosse o excerto de uma peça de teatro)
- O padre estava a terminar a homilia. Depois de articular o dogma da omnipotência de deus e a correlativa fragilidade das pessoas, dirige-se à audiência, disparando uma pergunta de retórica: “o que valemos?”
- A igreja, e os seus intérpretes, não têm remédio. O que valemos? O que valemos?!
(A repetição da pergunta, que não fora apenas de retórica, foi mais incisiva, soletrando cada sílaba, como se estivesse a sublinhar cada palavra.)
- É uma interrogação com resposta encomendada. Para legitimar o abismo entre um deus perfeito e as pessoas que vegetam na sua profunda imperfeição. Tanto abismo é propício à exaltação de deus e à humilhação das pessoas. Um crente poderia atestar ser este um diagnóstico exagerado; contraporia que não se trata de humilhar as pessoas, antes de as trazer pela trela da humildade, na sua interminável servidão perante deus. Eu digo que um deus assim (ou quem é seu intérprete) é o pior inimigo das pessoas. Deus é perfeito e essa perfeição é a prova de todas as nossas fragilidades. Devemos-lhe tudo o que em nosso perímetro reputamos de bom. O que de mau acontece é produto das nossas ações, delimitadas pelas fraquezas em que nos debatemos. É como se em nós habitassem dois hemisférios. Um, onde se congemina a positividade das almas, de que deus é credor total. O outro, em que medra a nossa profunda imperfeição, que se deve às nossas ações, o produto perfeito da nossa fragilidade. Talvez o mal seja de um deus que foi interpretado desta forma. Ou apenas de quem assim o interpreta.
- Que mal tem a introspeção? Não tens desses momentos heurísticos, em que procuras entender quem és e chegas à conclusão das tuas imperfeições e fragilidades?
- Não recuso a introspeção. Considero-me o meu maior crítico. Mas não preciso da tutela de uma entidade divina, ou da mediação de quem se diz seu tradutor, para povoar o meu pensamento. Não aceito ser tremendamente frágil como antítese de um deus perfeito e nesse abismo ser edificada a subalternização da pessoa. Um deus destes não é bondoso. Amesquinha a pessoa, com o seu consentimento. Paradoxalmente, um deus destes aproxima-se dos niilistas e dos que navegam no pessimismo antropológico (julgo que estes não ficarão confortáveis com a comunhão de barricada). As pessoas são o que são. Uma interminável fonte de erros, tragédias, passos em falso, lições desaprendidas, escolhas que parecem talhadas para o desabamento, arrependimentos. Mas são o produto da sua vontade. Os que sentem o perpétuo bafo de deus e a sua perfeição imaculada acabam por ser levados à inevitabilidade da sua frágil condição. O que não seria contraproducente, não fosse o abismo propositado que se abre entre deus e as pessoas. Esse abismo é usado para perpetuar a servidão das pessoas perante deus. E para justificar a perfeição de deus. A sua admiração a deus é cimentada na imensa imperfeição que exige a indulgência divina. Parece que temos de ser apenas enquanto deus é o nosso mecenas. A vontade própria é o veneno que nos atira para a fragilidade de que somos reféns. O que está errado: a fragilidade é-nos inata. Apesar de deus ou dos seus intérpretes.
- O que concluis, então?
- Que um deus perfeito não se liberta da imperfeição que é depender da imperfeição das pessoas. Eis a prova da perfeição das pessoas: elas sabem que são como a fragilidade da mais fina porcelana.
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