29.9.21

Matéria inconfundível, ou o abecedário dos fugitivos

No Words Left, “New Horizons”, in https://www.youtube.com/watch?v=MczXhiNxPn8

Falava-se de verbos fiduciários, a caução que todos diziam precisar para assinar uma folha em branco. Seria como deitar gelo fungível sobre a matéria combustível à espera que a febre deixasse de consumir os corpos. De outro modo, todos seriam fugitivos. E, desde o exílio, só ficariam em sossego se conspirassem contra a serenidade das marés que se deitam na esquadria da usança estabelecida.

Talvez não fosse preciso tanto. Podia nem sequer ser preciso o exílio se a fuga fosse apenas hibernação interior. O que se impunha era saber de que matéria são feitos os dissidentes incorrigíveis. Têm de costurar mentalmente a usura da matéria inconfundível, o seu magma condutor. Depois, na posse das referências que os situam na geografia, refugiar-se-iam no interior de si mesmos, herméticos às influências exteriores. Os outros não deixariam de ser os outros, mas sem produzirem as consequências de outrora. 

Não se trata de uma apologia da misantropia. (E que fosse: a misantropia não é crime e, muito embora não prescreva nos juízos morais, esses são a tradução dos barómetros usados pelos outros; são barómetros sem validade a não ser para eles.) Cuida-se da procuração para a afirmação de uma identidade. E a identidade, ainda que seja permeável aos mares exteriores e aos ventos deles exarados, é penhor da matéria inconfundível que nos torna únicos.

Alguém dizia, excitado pelos oráculos que destilam um porvir risonho baseado na bondade das pessoas, que o tempo se encaminha para a supressão do eu. Seremos – rematava o otimista de serviço – uma massa indistinguível, fautores de uma convivência sem beligerâncias nem confrontações espúrias. Seríamos uma massa indistinta, assente no binómio da supressão do eu e da privação das liberdades axiais.

No estreito canal que leva o caudal da identidade de cada um, as paredes narram histórias ancestrais de sangue vertido em combates por haver alguém que não tolerou a liberdade de um seu diferente. A matéria inconfundível é a impressão digital inapagável, que nem a reconfiguração dos conceitos e a reconstrução da História do futuro conseguem destruir. Pois há sempre uma válvula de escape: sermos fugitivos de um lugar onde nos sejam impostas baias que cerceiam o nosso ser. Mesmo que continuemos no mesmo lugar.

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