Working Men’s Club, “Teeth”, in https://www.youtube.com/watch?v=0ovHJ_NzHbE
(Nótulas de uma realidade paralela na ressaca das eleições autárquicas)
O país inteiro devia ser bordado com o estalão da casta e só os da casta (ou os que à casta aderissem, por gesto oportunista que seja) poderiam amesendar nos granjeios que o mecenas que nos tutela deixou em nosso bornal. E se, na primeira hora despois do sufrágio, os números neófitos anunciaram o que não constava sequer dos pesadelos da casta, era entrar em negação, esboçar discursos fátuos que almejavam arregimentar as hostes, como se fosse possível, através do risível postular de uma realidade alternativa, mudar a feição do sufrágio (ou convencer, à posteriori, os eleitores que não foram convencidos pela bondosa retórica da casta). Já que não se pode torcer os números até falarem o que queriam que eles falassem.
Pode-se puxar lustro aos números que conferem o total, como se o total escondesse as derrotas que calam fundo e doem mais. Invoque-se a filosofia, não a matemática: nem sempre quantidade se traduz em qualidade. Uma derrota cirúrgica no meio de um punhado de brilharetes banais ou inexpressivos faz com que o número menor morda mais do que o número maior.
Parece que a recente moda dos vulcões (em poucos dias: Islândia, La Palma, Etna, Guatemala), com o caos intrínseco, se inseminou artificialmente entre nós e um triunfo que seria tranquilo se obnubilou porque os súbditos não esconderam do voto um certo cansaço dos regentes. Nem os logros, tão habituais em campanha eleitoral e com a cumplicidade do eleitorado passivo, ou a subida a palco do timoneiro, salvaram a casta de uma tremenda desilusão na ressaca do escrutínio. Para compensar, na noite da contagem dos votos uma matriz foi encomendada para o devir próximo: fomos informados – ou, melhor ficaria: fomos instruídos? – que se hoje fossem as eleições que mais contam a maré continuaria a ser a mesma e o patamar do absolutismo estaria a uma vírgula de distância.
Esta é a enseada para que fomos empurrados. Talvez cheire um pouco a mexicanização da política, com a casta numa deriva autocontemplativa, não longe de um endeusamento em causa própria, apontando para as várias alternativas com desdém – como quem faz a seguinte pergunta de retórica: é destes fracos que quereis as mãos no leme da coisa pública?
Não é a demissão das alternativas que prospera. Este enredo manipulador é a luva que serve na mão dos inquilinos do poder. Mais importante do que o conto envenenado que nos é servido, com o beneplácito de um séquito de peritos e a passividade ou a conivência do séquito restante, é precatar a mexicanização do regime. A bem da saúde da democracia. Para não sermos ainda mais sequestrados com o quero, posso e posso a pretexto da fragilidade das opções. O vulto de D. Sebastião continua embebido nos escombros da História. Hoje, a casta é a tradutora pública de um sebastianismo que ameaça tornar-se endémico, como se a casta vigente fosse o mapa inevitável do porvir.
Ainda a dramaturgia se compunha nos seus alvores e os habituais atores pedidos de empréstimo ao âmago do sistema desviavam a conversa dos muitos que praticaram abstinência democrática. É uma metade que ficou de fora. Os poucos que arriscam uma interpretação ilibam os atores do sistema, como se a culpa pertencesse apenas aos súbditos que se demitem do direito de sufrágio. Não se aprende nada com os avestruzes – ou talvez até aprendam muito, estes atores contumazes, pois são peritos em copiar os avestruzes e a poluir o frugal entendimento do cidadão comum.
A culpa é dele(a), cidadã(o) comum, que não se motiva para o sufrágio, sem perceber os superiores predicados dos opositores ao sufrágio. Devia – quem sabe? – ser condenado(a) ao voto obrigatório, para não menosprezar a fonte da democracia. Ou – quem sabe, ainda? – devia ser penalizado(a) com uma sobretaxa no IRS por demissão dos deveres de cidadania. Só falta saber quando e em que circunstâncias se aplicaria o princípio da equivalência aos representantes quando fosse comprovado quão medíocres foram durante o mandato. Para não nos esquecermos do significado de democracia ao sermos condescendentes com a desigualdade entre representantes e representados.
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