Grinderman, “Mickey Mouse and the Goodbye Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=2leVvsm6SMM
São sete os pés (e não as saias) dos que trazem a fuga pela trela. Podiam ser saias, sete: os fugitivos podiam esconder-se na torre de babel das saias umas ensarilhadas nas outras. Mas nem todos são homens para usar saias. Já sapatos, todos usam. Todas usam. Até elas podem ser fugitivas.
E se sete pés são precisos, é porque todas as pernas são poucas para fugir do que se quer ser fugitivo. Antes dar corda aos sapatos, fazer com que nas pernas assentem pés, os sete, para que depressa fique distante o que se quer ao longe. Dirão os vulgares: só precisa de sete pés quem se dispensa da audácia para ir de frente aos contratempos que, nos covardes, legitimam uma fuga. Estarão enganados. Não há o menor laivo de covardia em ser-se fugitivo. Sê-lo não quadra com uma prova de incapacidade. É um ato de lucidez. Ninguém devia ser confrontado com o auto-exercício de mergulhar num mar cheio de contratempos se os puder ladear.
Fugir é, contra os melhores prognósticos, um ato de coragem que não está ao alcance da obviedade. É como fazer um desvio e ir pelo caminho mais longo, sabendo que o caminho mais rápido não é o melhor caminho. Às armadilhas que arroteiam o caminho diz-se não. Não se faça constar que perante elas devemos sempre a capitulação. Quando esse for o único caminho a ligar dois pontos no mapa, é uma empreitada imperativa. Havendo modos diferentes de atalhar o contratempo, só se ganha em paz ao saber como evitar o terreno minado. Os sete pés podem até ser poucos para o estatuto de foragido.
O corpo que não hesite: se oito, nove, dez ou mais forem os pés em inventário, que se deite mão a todos eles se for a garantia para a supressão dos contratempos. Não seremos o negativo da nossa original fotografia se todos esses pés forem usados para a fuga providencial. Não haverá maior afoiteza.
First Breath After Coma, “Change”, in https://www.youtube.com/watch?v=rA52LqJYoYY
Olho o benigno pesar que se enovela nas camadas de névoa. O rio escondeu-se, sob suspeita de não se dar a mostrar para o que remanesce do dia. As pessoas prosseguem o seu viandar, indiferentes. Podiam preencher uma caderneta sem critério, se a atenção não estivesse noutra sentinela.
As setas nas ruas seguem outro critério. Combinam com a toponímia – disse uma vez, em arroubo meio poético, o edil. Agora que passou tanto tempo, diz-se que o outrora edil passeia a decadência pelas ruas da cidade, sem dirigir a palavra a vivalma. Ninguém prestava atenção à decadência do lúgubre homem, que se recusava a ficar preso dentro de casa e arrastava a solidão pelas ruas que (dizia-se, não sem exagero) que já foram seu domínio. O inapelável sofrimento alheio não é da lavra dos que dele são testemunhas. As ruas pareciam emagrecer por osmose com a magreza do velho homem. Ou era do efeito do nevoeiro persistente, que deitava um pouco de noite sobre a luz diurna.
Podia fazer uma caderneta dos loucos, dos mentirosos – com o cuidado de advertir que uns e outros não são sucedâneos. Mas como podia organizar a caderneta se não sabia como inventariar os atores? Os chapéus bizarros não pertencem só aos loucos. Os mapas esventrados por punhais demoradamente ensanguentados não são usados apenas pelos mitómanos. A caderneta teria de envergar outras categorias. Não sabia quais, depois de algum pensar.
Continuava à espera que o nevoeiro levantasse para dar lugar à paisagem que ornamentava os olhos. Perante e teimosia do nevoeiro, agasalhava os ossos contra o magma fundente. Sempre soube que a combustão era um rastilho que não se apagava. Dizia-o, às vezes, para convencimento de um envelhecimento que se adiava no frémito da vontade. Não queria capitular, a não ser naquele tempo ausente que se sobrepusesse à vontade, dinamitando os folhos que aformoseiam as mangas diametrais. Era por dentro dos sonhos desenhados pelo rigor dos milímetros que se anunciava uma grande mentira. O outrora edil só era uma mentira para quem sentenciava a sua decadência.
Não seriam os elegantes denunciadores das farsas a adestrar clepsidras radiantes. As mentiras (disse-o o edil, nos seus faustosos tempos) só pertencem a quem as tutela. Não há caderneta que as inventarie, a não ser nas funduras onde se entretecem os segredos.
The Divine Comedy, “The Best Mistakes”, in https://www.youtube.com/watch?v=0U8rzcXeN_0
Dos efeitos termais: alguém contaminado por interiores águas poluídas vai ao encontro das águas termais. Deseja que as águas termais reparem as suas poluídas interiores águas. É como se as suas adoentadas águas estejam calcinadas e espere que a fonte termal as purifique. Presume-se que as águas termais têm este efeito heurístico, que são brancas águas que limpam as águas tomadas pela escuridão. Faz-se preto no branco. Mas não é o preto que tinge o branco; o branco exerce um poder curativo que desocupa o negrume do que era o seu lugar. Ainda não percebi por que os tutores do politicamente obrigatório – que vigiam de perto o idioma, inspecionando meticulosamente expressões idiomáticas que devem ser rejeitadas ou, pelo menos, reinventadas –não se insurgiram contra o “preto no branco”. Talvez porque haja uma saída alternativa do labirinto semântico: invoca-se o “preto no branco” quando uma dúvida ganha esclarecimento. O efeito termal é sobre o conhecimento, ou a interpretação que dele se tem. O branco é o vazio, à espera de completude. A completude é servida pelo preto que se lhe apõe. Só então o branco ganha significado. O branco sozinho é apenas uma folha de papel vazia, guardando o potencial do que há de vir a ser se o preto se justapuser. É o preto que ganha significação. O preto que atribui completude. O preto-superior e o branco-dependente. Porque o branco, quando nidifica na sua solidão, é um nada de que nada transpira. Poderá ser um convite a que alguém desvirgine o branco se lhe apuser palavras escritas a negro, ou um desenho a carvão. Só então a página deixa de ser o vazio do vazio, preenchida pelo preto que lhe empresta vida própria. Afinal, os que tutelam a reinvenção das convenções não têm de estar preocupados com o “preto no branco”. Pois é o preto que se deita no branco e se mostra seu superior.
Nick Cave & Warren Ellis, “We Are Not Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=kGVhwgHIy74
Estava perdido a um canto da loja do artesão de antiguidades, o cadeirão que, pela pose extática, dir-se-ia ter levado nobre vida enquanto foram de fausto os dias dos seus proprietários. Os bordões dourados são apenas uma circunstância do passado, gastos e desmaiados, mal se notando que em tempos terão carregado um dourado flagrante. Os braços do cadeirão exibem as provas da usura do tempo e dos braços de quem nele procurou repouso: a fazenda, que seria de primeira escolha, está coçada e mal se nota de que filigrana foi feita a poltrona.
O usuário era alguém com pergaminhos nobiliárquicos – um herdeiro datado da nobreza que perdeu os privilégios. Condenado à decadência, assistiu à dissolução do património e à privação das genuflexões que lhe eram devidas noutros tempos. Envelheceu e durante muito tempo. Esse foi o maior castigo que deus lhe impôs (ele acreditava em Deus, até ter percebido o jaez do castigo divino): forçá-lo a assistir duradouramente à sua decadência.
À morte do fidalgo, o património restante, mobiliário incluído, caiu em hasta pública por omissão de herdeiros legítimos. Um liquidatário judicial enamorou-se pela poltrona e, às escondidas, desviou-a do leilão, não pagando um avo. Trouxe-a para casa, com a ajuda de um amigo que era companhia de duvidosos esquemas. A poltrona fez paragem num apeadeiro antes de enfeitar a sala da casa do liquidatário judicial: era preciso um restauro que lhe devolvesse a grandiosidade de outrora. O liquidatário judicial era, em segredo, convicto monárquico e sonhava com a promoção aristocrática. Nem que fosse apenas através do pomposo património mobiliário que enfeitava a casa.
Uma noite, o lugar foi assaltado. Os meliantes terão estimado que a poltrona tinha um valor considerável (“este ‘sófá’ – sic – tem o ar de ter vindo de uma família abastada”). Dias depois foi encontrada aos caídos entre o amontoado de tralha na feira da ladra. O feirante comprou-a a dois drogados que julgaram ter feito um grande negócio ao vender o objeto por trinta euros. O feirante sabia que a poltrona valia muito mais, apesar do estado decadente que suplicava por um restauro.
Quem comprou a poltrona foi uma nova-rica, para notória insatisfação do consorte que se limitava a fazer a vontade enquanto encolhia os ombros – a metáfora acabada da resignação a que se resumira. A dondoca pagou duzentos euros e achou ser um achado, a compra. Poucas semanas depois, o consorte extravasou a impaciência acumulada nos (por si considerados) longos anos de matrimónio, extraindo-se, unilateralmente, aos deveres legais do enlace. Por pirraça, exigiu a poltrona na hora da meação do património conjunto. Não sabendo o que fazer a tão inestético objeto decorativo, enjeitou-o para o bas fond de um armazém na periferia, onde a poltrona estava condenada ao definhamento final (tantas as ratazanas que habitavam o lugar a meias com uma humidade que ia ao fundo dos ossos).
Foi por acaso que um antiquário descobriu o armazém. Teve um furo no pneu e a falta de destreza levou-o a procurar ajuda. O fiel depositário do armazém estava, por acaso, no local. (Era a visita semanal para inventariar os objetos armazenados.) As ferramentas necessárias para a mudança do pneu estavam dentro do armazém. Foi o faro do antiquário que o levou a descobrir a poltrona, meia perdida entre os despojos de muitas coisas que só não eram inúteis porque alguém tinha um espírito arquivista irrenunciável. O antiquário negociou a poltrona por dezoito euros. Sem demora, levou-a ao artesão que cuidava dos restauros em seu nome.
Tempos depois, um terrível incêndio florestal consumiu a oficina onde o artesão restaurava as velharias por conta das encomendas de outros. A poltrona ficou reduzida ao esqueleto que era apenas feito das molas que emprestavam conforto às almofadas subjacentes. O resto, desfez-se em cinzas. A par dos pergaminhos aristocráticos do seu original proprietário.
A liberdade individual dissolve-se no argumentário dos defensores de medidas musculadas que impõem a vacina obrigatória. A descrença no livre-arbítrio, e na inerente responsabilidade individual, aumenta na proporção do pânico que ameaça tomar conta do espaço público com mais um crescimento de casos de COVID-19. A lógica assenta na vacinação obrigatória para dissipar as hipóteses de contágio. Em socorro desta linha argumentativa, a correlação (mas ainda não a causalidade inequívoca) entre novos casos de COVID-19 e pessoas que não estavam vacinadas.
Os que se agarram à liberdade individual como esteio inviolável sentem-se cercados. Protestam. Recusam a vacina e outras medidas que cerceiem a sua liberdade (novos confinamentos; apresentação obrigatória de certificados de vacinação ou de testes negativos à COVID-19). Alguns, mais radicais, tecem extrapolações rasantes a teorias conspirativas: é o Estado a mostrar um músculo incompatível com a democracia liberal (nos Estados que o são). Em resposta, os governos esgrimem uma nova TINA (“there is no alternative”): se estas medidas excecionais não forem adotadas, viveremos reféns do vírus, a pandemia não capitulará e mais mortes engrossarão as estatísticas. No meio do xadrez argumentativo, é mais difícil encontrar a bússola da liberdade. A liberdade individual está hipotecada? E, sendo-o, é defensável que as limitações se devem às exigências de contenção da pandemia?
Estas são perguntas a que é difícil responder. É importante contextualizar: mesmo nas democracias liberais, não é de agora a adoção de medidas restritivas sempre que circunstâncias excecionais as convocam. O recurso a estas limitações tem de ser enquadrado pela Constituição. Ela define em que condições podem ser impostas restrições à liberdade individual através do estado de exceção. Para muitos, os requisitos de legitimidade das restrições à liberdade individual foram atendidos durante a pandemia. A emergência justificou a exceção. Esta legitimou a entorse temporária da liberdade individual. Em nome do bem comum. E se fomos passivos enquanto destinatários destas medidas? E se aceitámos, acriticamente, a justificação do estado de exceção? E se fomos, por via da passividade, cúmplices da limitação da liberdade individual?
Que o leitor não tresleia estas interrogações. Elas são parte do método inquisitivo, tão caro à filosofia. A ausência de espírito interrogativo talvez seja a maior fenda na liberdade individual no percurso da pandemia até hoje. Deixar de colocar estas interrogações (que têm de começar como autointerrogações) não nos filia num sombrio movimento negacionista. É importante que esta delimitação de fronteiras fique bem estabelecida. Uma das provas de como somos levados a um estar acrítico é o acantonar imediato, num qualquer sector negacionista, dos que ousam erguer interrogações que desafiam o consenso imperativo. O raciocínio que me trouxe até aqui em momento algum se serviu do argumentário lunático dos negacionistas. Nem o fará daqui para diante.
Este é o tempo certo para inquirir sobre o paradeiro da liberdade individual. Mais do que dantes, quando, no auge da pandemia, as limitações à liberdade eram mais visíveis. Atravessamos um tempo importante, pois as coisas tornam-se paradoxalmente mais baças. Os que se insurgem contra a vacinação obrigatória, ou contra outras medidas que restringem a sua liberdade, convocam a rebeldia por ajuizarem que a sua liberdade individual está a ceder aos caprichos dos mandantes. Temo que estejam a exagerar no diagnóstico. O exercício pedagógico que se impõe é inspecionar os fundamentos das democracias liberais e perquirir o significado da liberdade individual. Não o significado teórico, mas o que se traduz na prática corrente. Sem que este exercício corresponda à legitimação das limitações que a prática banalizou.
As democracias liberais são atravessadas pelas exigências do Estado social e pela complexidade do mundo moderno, permeável à fragmentação individual e exposto a novas formas de intrusão possibilitadas pelas facilidades tecnológicas. A liberdade individual foi sendo repensada numa democracia assim adulterada. Silenciosamente, e de forma gradual, a democracia foi reconfigurada. Faz sentido falar de liberdade condicional em vez esgrimir a pura liberdade individual. Esta abre-se a um leque de restrições e exceções e à reordenação dos valores que a deixam num plano inferior quando alguém (normalmente as autoridades, no uso do seu poder de autoridade) invoca a necessidade de a liberdade individual se submeter ao bem comum.
Não foi a pandemia e as suas exigências que trouxeram visibilidade a esta metamorfose. A pandemia tornou este dilema visível. Ou aceitamos que o tabuleiro em que nos movemos foi alterado, ou admitimos que as peças que somos nesse tabuleiro têm uma natureza diferente da que julgávamos. Para, então, concluirmos que a liberdade condicional ter-se-á tornado na metáfora da liberdade individual.
The Smiths, “What Difference Does It Make” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LZyhrQpZ9-M
Dantes, escrevia-se cartas. Os correios serviam para mais do que requisitar encomendas. As lojas pediam visitas in personae. Pagava-se a dinheiro vivo, que o dinheiro ainda não se tinha desmaterializado. Ou havia dinheiro (vivo), ou o fiado não vinha atrelado ao dinheiro de plástico que fez muita gente perder-se de conta(s) – ainda não havia dinheiro de plástico. Dantes, escrevia-se cartas.
Dantes: que palavra inútil. A nostalgia arrefece o sangue, torna-nos répteis sem aptidão para ler o chão ladrilhado onde se compõe o tempo que é nosso (porque é nele que vivemos). Dizemos “dantes” como se de lá voltar fosse demiúrgico. Pode-se contrapor que os tutores da bondade do presente (por oposição à inutilidade de deitar contas ao passado) estão emaranhados numa teia de ingenuidades. Dirão os desconfiados que o juízo não pode ser a refrangência de bem-estar acautelada pelo avanço da técnica. Se o for, não passamos de um simulacro, anestesiados pelas facilidades que a técnica avançada nos trouxe.
Dantes escrevia-se cartas. Agora enviamos emails ou nótulas através das redes sociais onde muitos resumem a sua existência. Continuamos a comunicar. Podem os conservadores repudiar o arremedo de linguagem que atropela a gramática, que continuará a ser uma linguagem e, portanto, um instrumento da comunicação. Deixámos de ir aos correios (menos os velhinhos que descontam o cheque da reforma e lá pagam a luz e a água e o gás e o telefone e “a contribuição predial”). Mas os correios chegam até nós. Não queremos ir às lojas, porventura pelos muitos estigmas alimentados pela misantropia, ou apenas porque, hedonistas, somos peões do comodismo. Mas as lojas entregam a mercadoria nas nossas casas. Quase não usamos notas e moedas, viciados na higiene e na facilidade do dinheiro eletrónico e no dinheiro de plástico. Mas continuamos a alimentar o processo económico.
Os puristas protestam: muito deste hodierno viver soa a artificial; muito se desfaz em simulacros do genuíno. Mas, o que é genuíno? Que diferença faz saber se somos súbditos do genuíno, ou se capitulámos à sua adulteração? Continuamos a escrever cartas, por outros meios. Continuamos a escrever – e isso é que importa.
Gorillaz ft. Fatoumata Diawara, “Hong Kong” (live”, in https://www.youtube.com/watch?v=4EKHacXZn7I
Pelas braçadas do mar, parece que a manhã se esgotou no anátema dos poltrões. Predomina o olhar vazio, como se a paisagem fosse desprovida de gramática. Espera-se que a noite não embacie os navios que guarnecem os mercados com a mercadoria que impede a melancolia. Este é um lugar mercantilizado, sem almas que se empenhem a elas mesmas.
Povoam as ruas, os delatores. Arranjam-se, apessoados, todos os dias da semana. Ao fim de semana entregam-se ao desleixo. Deixam de falar como manda o formalismo académico, esquecendo-se do coloquialismo que alinhava as suas alcunhas. Os outros nem dão conta. Apessoados ou apenas desligados da elegância quando o fim de semana anuncia o despojamento da rotina, conseguem ser como os demais – anónimos.
Um deles que gritou, no meio de uma rua semi-habitada, que havia uma árvore no meio do mar. Os transeuntes ocasionais prosseguiram como se não se passasse nada. Ele ficou no meio da rua, sem medo de ser atropelado pelos carros incessantes, de dedo em riste a repetir a frase improvável: “uma árvore no meio do mar. Eu vi. Eu vi.” Uma rapariga chegou ao pé dele, mas ele não deu conta, tão absorto na sua epifania:
- Onde viste uma árvore no meio do mar?
- No mar ali à frente, depois da enseada onde o farol fala com toda a latitude.
- Não estou a ver...
- Já não consegues ver terra desse lugar. É como se fosse uma ilha súbita que passou a povoar uma nesga de mar. Mas é só uma árvore.
A rapariga sacudiu a chuva que começara a cair. Ficaram os dois parados no meio da rua, indiferentes aos carros, por sua vez a eles indiferentes. Ficaram os dois, sem medo da chuva insistente, à espera da noite.
- Se ficares comigo mostro-te a árvore no meio do mar. Tens de esperar pela noite.
- Porquê a noite?
- A árvore tem medo do dia. Tem medo que os piratas oficiais venham nas fragatas e a aprisionem por apropriação da geografia do mar.
Já de madrugada, subiram ao farol, clandestinos. Esperaram pelo movimento rotativo do farol. Ele indicou com a mão o quadrante onde se encontrava a árvore no meio do mar. Instou-a a esperar pela boa localização do farol, tudo em silêncio para não serem encontrados. Mas o farol percorreu o horizonte inteiro onde só o mar era mapa. Não viram a árvore no meio do mar. A rapariga impacientou-se:
- Não vejo a árvore.
- Espera! No fio do horizonte há uma neblina que esconde a árvore. Espera só mais um pouco.
O tempo correu o seu curso normal. Já a alvorada despontava e não havia notícia da árvore no meio do mar. A rapariga intuiu que ele queria companhia para derrotar a insónia, ou para terçar armas contra a solidão temível da noite. Quando desceram a escadaria do farol, ele murmurou:
- Acredito que afinaram o farol e ele deixou de apontar ao lugar onde a árvore pertence à imensidão do mar. Acredita em mim: ali existe, algures, uma árvore hasteada no meio do mar.
Dry Cleaning, “John Wick”, in https://www.youtube.com/watch?v=yKiaHxYaVqs
O pesado peso que precede uma fama confere direitos de outro modo banidos à vulgar pessoa. É o desmentido (não oficial) da igualdade.
Noutros haverá atitudes que soam a descaramento, inadmissíveis que se tornam ao olhar vulgar. Aos pesos pesados tudo se consente. Com a ajuda de hermeneutas que dedicam os seus melhores esforços a agilizar teorias complexas que provam a normalidade do comportamento que seria soez se não tivesse partido de um peso pesado. A pose senatorial e o reconhecimento consensual cuidam do resto. Cuidam, sobretudo, de normalizar o que nos demais seria motivo de áspera censura.
Aos pesos pesados são devidas deferências. Terão oferecido um contributo inestimável para a edificação social. O que os torna credores do respeito dos restantes, elevando-os a um olimpo que os endossa para um panteão significativo onde só os eleitos têm lugar. Aos outros, inapelavelmente situados na base da pirâmide, destina-se a imperativa vassalagem aos pesos pesados. Que se tornam cada vez mais pesados com o andar da idade – pois a meias com este viés vinga o convencimento de que a idade é um posto.
A um peso pesado não se pede corroboração das ideias ou das palavras. O estatuto garante que essas ideias ou palavras são inatacáveis. Ganham uma espessura de verdade, com a cumplicidade de quem os pajeia. Talvez por o saberem, os pesos pesados servem-se do estatuto e da pose senatorial para arrogantemente se colocarem três degraus acima do demais. Dizem; e ao dizerem, são incontestáveis. Porventura o consenso emergente (o que quer que isso seja) considera-os inabaláveis em virtude do seu pesado peso, que os torna inamovíveis. Os elefantes não se carregam com o músculo de um braço. Tornam-se avidamente desastrados se os deixarem andar à solta no nosso frágil palco composto por porcelanas. E nós aplaudimos quando eles estilhaçam a louça em palco.
Os pesos pesados desmentem a frugalidade dos pressupostos e a humildade das proclamações. Os imperativos categóricos são contestados pelo diamante em bruto da filosofia. Ao que parece, a filosofia desconhece os pesos pesados e quão pesados esses pesos são. De outro modo, a filosofia aprenderia que não se ergue uma vírgula de contestação aos pesos pesados. A última coisa de que precisam, é de uma dieta gnosiológica – sob pena serem levados em mão até ao bordão da extinção.
Este seria o destino que melhor quadrava com o mais inestimável serviço que os pesos pesados podiam prestar.
Mão Morta e Remix Ensemble, “Facas em Sangue” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=ftsI9KjmlqQ
O homem procura estupidamente uma centelha do passado. Procura-a no vesúvio do presente, acreditando na fusão dos diferentes tempos. Diz:
- O tempo é um contínuo. Separar o tempo presente do passado é uma loucura, um artifício para vivermos aprisionados na ditadura do presente.
Olha em redor ao perscrutar as veias que transportam o sangue álgido. Apetecia-lhe meter as mãos por dentro das veias e temperar o sangue. Jura que é o mesmo que soube ser ao arranjar as memórias num livro sem prefácio nem epitáfio. Teme a morte. Não concebe o mundo depois da morte. Um dia interrogou-se, mas só a si mesmo (que teria pudor em exibir esta ostentação se não estivesse limitada à sua ardósia):
- O que será do mundo depois da minha morte?
Ele sabia de tudo o que trazia como lastro. É como se conseguisse inventariar todas as pedras depositadas no leito do rio e soubesse dar nome aos peixes que atravessam o caudal. E ele deposto diante da angústia, penhorado pelo futuro que dizia desconhecer, abrindo janelas de par em par à espera das bocas dinamite que trouxessem as boas novas. Queria que dessas bocas houvesse anúncios de destruição da boçalidade, que a desconfiança que costura os frágeis laços entre as pessoas tinha sido desmontada peça-por-peça, que já não havia espaço para a maldade no dicionário das coisas. Queria que todo o mar fosse um espelho de liberdade e não houvesse regentes que traduzem o poder em proveito próprio sob o disfarce do interesse comum. Ele queria dessas bocas um módico de mudança, nem que fosse a indicação precisa no mapa do lugar onde tudo seria um fingimento possível, o exílio voluntário para desalinhar da angústia e do cansaço do mundo que obteve provimento.
Queria uma biografia que fosse dissidente dos lugares que foram seus apeadeiros. Que uma centelha luminescente convocasse uma porta de saída sem dar entrada num precipício. Ou então, se o precipício fosse o pretexto para o exílio voluntário, queria que ele entrasse na feição da sua biografia. Porque protestava contra os obnóxios que insidiosamente colonizam as biografias das pessoas, esvaziando-as. Ai de quem o tentasse consigo: envergaria as luvas de boxe e, com a destreza possível, cuidaria de dar luta contra a dissolução da sua biografia. Nem que, a seu desfavor, os obnóxios militantes da purificação forçada do novo homem novo invocassem a sua dissoluta biografia.
Seria o que fosse, sem que ninguém pudesse contrariar a maré que deu ao areal a biografia selada com o seu nome. Mas de uma biografia se tratava. Modesta, muito provavelmente insignificante. A sua biografia, habilitada pelo Direito mais nobre.
Soundgarden, “Black Hole Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=3mbBbFH9fAg
O crepúsculo faz lei. Dita-o o entardecer. E, todavia, o poente segrega a sua própria exceção. Se o olhar se afivelar pelo poente será tutor da derradeira claridade à medida que o crepúsculo toma conta do nascente. O corpo atira-se para um labirinto de paradoxos. De costas para o crepúsculo nascente, prende o olhar aos últimos lampejos de claridade.
Se do poente não há notícias é porque à noite se pressentem os demónios. Dos demónios que sobejam na safra da noite – pois da noite se diz que é lá que se acoitam os fantasmas. Não se perceba este desejo de conviver com entidades castradoras. A noite não se expõe como o avesso do dia; é a sua continuação.
No poente amparam-se as palavras malditas. Procuram a noite como pretexto. A noite é o véu que as disfarça de intenções. Se delas forem as metáforas triunfantes, dir-se-á que o poente enfeitou a noite com as miraculosas pétalas que anulam o mau-olhado que os feiticeiros atribuem à noite. Só que o poente não passa de uma entidade tangível. Funde-se com a fina linha que arboriza o horizonte. Sabe-se que depois ainda há ponte por revelar.
A geografia podia não importar tanto. Se as palavras emudecem no silêncio da noite enquanto percorrem o poente, sabem que haverá um lugar em que a claridade depõe o crepúsculo. Essa luz clara invade a noite e faz com que ela perca o seu nome. O poente encontra-se com o nascente. A roda-viva do mundo deixa à mostra esse sortilégio inacabado. Permanentemente inacabado.
Dizem que há um lugar onde o mundo acaba. Dizem que o poente se encanta com o paradeiro perdido onde os lugares enfeitiçados são desmentidos. Se o sangue deixasse de ser uma constante ebulição e as palavras fossem tomadas pelo seu ângulo morto, o poente deixaria de ser um lugar apenas imaginário. Teria finitude, para se afeiçoar a uma mapa ao menos inventado.
Desse lugar, o poente seria o porta-voz dos sonhos que não chegam a ter cais onde aportar. Seria um lugar inacabado. À espera da mão-de-obra criativa dos poetas ávidos de terçar as palavras que emprestam beleza à boca que as pronuncia. O poente não mais seria uma desesperança. Investir-se-ia no lúdico lugar onde os mistérios se encontram com os olhos vendados.
Explosions in the Sky, “Flying”, in https://www.youtube.com/watch?v=2bSQISgJtBg
Pudesse ser usurpação. Pudessem apenas revestir a medula com as cores desmaiadas da noite nórdica. Os nomes passavam de demanda em demanda, um amontoado sem espécie a pedir inventário. As pessoas só queriam nomes bons. Mas ninguém sabia o que eram os nomes bons.
Numa ponte, os passos transversais tiravam o bolor das varandas onde se adivinhavam os nomes. O vento não era um pressentimento trágico. Se em vez de vaidade o chão fosse feito de lhaneza, ninguém se importaria das horas a mais no desproveito do dia. Mas havia um compêndio onde estavam emoldurados os nomes bons. Ninguém perguntava por que eram esses nomes, os que tinham solene letra de forma nas páginas embuçadas, e não outros. Às lombadas dos livros podiam ser retiradas impressões digitais incontáveis. Uma multidão curava da sua ambição aos nomes bons. Consideravam-na legítima, a essa ambição.
A usura dos nomes seguia o rastilho dos nomes apontados. Eram nomes nómadas, o direito ao máximo elogio pelos forasteiros desses nomes. Não queriam outra comenda, os que dela se ufanavam. Os outros, aspirantes a um nome bom ou apenas humildes servos, desfaziam-se em incessantes genuflexões. Os nomes bons distavam léguas dos nomes demais. O precipício não participava a necessidade de uma ponte. Aristocraticamente entronizados, os nomes bons traduziam uma grandeza de que não se sabia paradeiro. E, todavia, os fundos tão fundos onde havia crocodilos famintos insinuavam-se para os aspirantes que não conseguiam deixar de ser nomes bastardos.
Nas hastes pontiagudas da noite, a deferência tornava-se anónima. Os nomes bons, emaciados, adulteravam-se na penumbra. Por isso se dizia que a noite era democrática (desde que não fosse nórdica no equinócio de Verão). Os sentidos avizinhados sobrepunham-se. A gramática perdia modos. Os nomes eram nomes, todos da mesma igualha.
- Os nomes são apenas uma máscara que veste o fingimento nas pessoas.
Em vez de futuro, a alvorada mantinha os termos de um tempo gasto. Os nomes antepunham-se nos vitrais da razão. Não havia convites válidos e as pessoas dançavam no parapeito da loucura. Não sabiam dizer os seus nomes. Só os nomes dos outros. Esses, que eram os nomes bons.
Idles, “MTT 422 RR”, in https://www.youtube.com/watch?v=drLL2aCPNtc
Não percebia a utilidade dos cataventos. O vento não se deixa aprisionar. Como podia alguém ter inventado um instrumento que teria serventia para apanhar o vento?
Assim andava, entretido com minudências. Era o truque para se distrair das coisas sérias do mundo, daquelas que – ensinam os bons costumes – são as que interessam. Não queria saber dos desandamentos da política, nacional e internacional, nem dos meninos ativistas de causas neófitas diligentemente fabricados por ativistas de outras cepas geracionais. Não queria que lhe contassem as invariáveis desgraças que mutilam o bem-estar dos bons costumes (entre uxoricídios e corrupções, lenocínios e brutalidade vária, e bestuntos comentadores). Dispensava as imagens dos noticiários que poluíam o imaginário e hipotecavam o sono (sobretudo quando o povo, emergindo da sua profunda, ignara condição, estaciona às portas dos tribunais reclamando justiça pelas próprias mãos contra um facínora à espera de julgamento).
Queria uma anestesia. Divagar nas águas habitualmente tidas por improfícuas, aquelas onde navega o pensamento inquisitivo. Queria poder viajar em viagens imaginárias, tecidas por dentro do pensamento, à boleia de interrogações sucessivas, nem que elas se vertessem sobre as banais coisas que, todavia, não quadram com a frivolidade que campeia nas revistas da especialidade. Por isso, os cataventos. E os ventos que, paradoxalmente, não se deixam aprisionar. Haveria de haver uma razão para os cataventos terem sido inventados. (Daqui se deve descontar a possibilidade de serem sinais que exibem a direção e a força do vento, com utilidade para a navegação nos mares e pelos ares.) Nem que a demanda arpoasse uma singela descoberta: os cataventos não passam de objetos decorativos.
Assim andava, propositadamente distraído do mundo exterior, num ensimesmar heurístico. Talvez fosse um qualquer osso vetusto a dar de si. Um osso, contudo, minúsculo, mas com a maresia tóxica dedilhada pelo mundo na sua face contemporânea a causar as dores reumáticas que o indispunham para conviver com a atualidade. Daí à misantropia ia um pequeno passo. Antes isso, e a perceção dos cataventos como adornos, do que a contaminação do mundo à sua volta. Bendito osso vetusto.
The Clash, “Know Your Rights”, in https://www.youtube.com/watch?v=5lfInFVPkQs
Já não se pode dizer a famosa frase “chapéus há muitos”, porque eles rareiam. Já quanto à parte terminal da afamada frase, diferente conclusão seria retirada pelos observadores da contemporaneidade: os palermas estão em alta, tamanha a sua abundância. Mas não é de palermas que o assunto vem à colação, é de chapéus. Sinal dos tempos: a bordadura da moda está nos penteados, não nos chapéus que escondem os penteados. Os homens já não usam chapéus. Usam penteados a preceito. Os que passaram o prazo de validade capilar, estão convencidos que mostrar a calvície também é moda.
Havia um rapaz calado que aparecia sempre de chapéu. Os outros, tão ávidos da sua superioridade estética, escarneciam dele. Ele não se importava. Nem protestava os reparos desagradáveis patrocinados pela estultícia da superioridade estética. Sabia, no seu íntimo, que não passava de bazófia, era o mostruário da frivolidade de quem se julgava no púlpito da estética – como se a estética não fosse um julgamento subjetivo e como se a estética fosse tudo o que contasse.
Ia mudando os chapéus, mantendo a extravagância que não capitulava perante a insistência da injúria. Sentia um incentivo para a diversidade de chapéus de cada vez que um mentor da estética dominante se ria na sua cara com o desdém próprio dos inconsequentes que se julgam superiores. Ele não acreditava na superioridade de ninguém (sem ser um fiel seguidor da igualdade tirada a fórceps).
A certa altura, os outros queriam saber como era o penteado do rapaz. Dominados pela dignidade de não forçar alguém a fazer o contrário do por si desejado, esbarravam na extravagância diária do chapéu sempre diferente. E no rapaz que, metodicamente, nunca retirava o chapéu. Os outros iam sendo corroídos pela curiosidade. Já não se importavam com a sucessão interminável de chapéus; só queriam saber como era o penteado do rapaz.
Ele não capitulou às oportunistas manobras de sedução – a páginas tantas, os que dantes dele escarneciam agora eram amizades. Quando lhe perguntaram por que não mostrava o penteado, limitou-se a retorquir que ninguém conhecia o penteado de Shakespeare.
The Cinematic Orchestra (feat. Roots Manuva), “All Things to All Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=aG_HnSYBztY
Há gestos que valem mais do que palavras e correspondem a uma contundente fala através do silêncio. Erguer o dedo do meio como representação fálica é insultuoso. É para isso que estamos formatados. Ou mandamos alguém usar a representação fálica do dedo do meio, ou sugerimos que essa pessoa seja usada pela representação fálica do dedo do meio do ofensor ou de outrem.
Mandam as convenções que se interprete o hastear do dedo do meio como uma injúria dirigida ao destinatário da metáfora gestual. E devê-lo-ia ser sempre? Na comunicação que usa signos visuais (como na que depende da fala), estabelece-se uma relação sinalagmática entre o emissor e o destinatário. Quem ergue o dedo do meio, preso como está às convenções, sabe das suas intenções: injuriar o destinatário do gesto, encomendando-lhe o sofrimento (ou a humilhação) próprio de quem é flagelado pela representação fálica do dedo do meio. Parte-se do princípio (talvez errado) que o sexo é uma flagelação. Quando o pressuposto é errado, o resto do raciocínio é imprestável. Contaminando a metáfora gestual.
O embaraço desta representação metafórica, que pode desconstruir uma convenção firmada na linguagem gestual, é o entendimento do destinatário quando alguém lhe aponta o dedo do meio. O autor do dedo do meio não pode adivinhar a reação do destinatário. Este pode interpretar o gesto como a sugestão que, ele próprio (sendo do sexo masculino), dê uso ao falo. À partida, não recusará o convite, a menos que tenha passado o prazo de validade e já não o consiga exercitar para a função.
Mas a pessoa a quem se destina o dedo do meio pode ter uma hermenêutica diferente, colocando-se na posição passiva, ou seja, da pessoa a quem o emissor do dedo do meio encomenda o falo correspondente (que será do próprio ou de uma terceira pessoa, não nomeada para os devidos efeitos). Mesmo neste caso, não pode o autor do gesto insultuoso dar por adquirido que essa será a interpretação da pessoa a quem o gesto se destina. Esta pode imaginar um prazer lúbrico incomensurável ao ser colocada na posição de quem é usada(o) pelo falo representado pelo dedo do meio. Termos em que a metáfora gestual, e o significado que ela encerra na linguagem dos comuns, se dissolve em nada – ou no oposto do que era pretendido: não é insultuoso, é um convite ao prazer carnal; é um gesto prazeroso.
A linguagem devia ser reinterpretada para não ser refém de convenções unívocas que excluem o sentido apreendido pelo destinatário de uma mensagem. O emissor, por sua conta, não devia estar preso a um sentido dominante que corresponde à sua linguagem. Se o souber, ficará ciente que muito depressa se esvazia o propósito de uma ofensa quando hasteia o dedo do meio, deste modo virada do avesso e transfigurada em convite ao prazer dos corpos.
A metáfora do dedo do meio é um hino ao sexo como ato pecaminoso. Devia ser extinto do código de signos.
Rádio Macau e Francisco Rebelo, “Uma Questão de Tempo”, in https://www.youtube.com/watch?v=11p3U-xNfLg
“Raios partam se não consigo vencer a tempestade”, resmungava, enquanto atirava o corpo contra o vento iracundo que não viera no boletim meteorológico. “Ele não há vento mais teimoso do que a minha teimosia”, continuava a vociferar, como se, ao fazê-lo, arregimentasse as forças quase sobre-humanas que eram precisas para arrotear a tempestade. Ninguém o advertira que sair à rua e meter-se no meio de uma tempestade não era sensato. Assim como assim, não dava ouvidos a ninguém. Assim fora sempre que caíra no cisma da doença. Ele era o último a admitir que estava doente; em rigor: nem quando acamara admitiu que era por causa da doença (“estes médicos são uns exagerados”, protestava). Que não lhe aconselhassem moderação, que a vida era para ser levada através de um fio condutor que misturava ações vertiginosas e impensadas com a descontração de quem parecia estar a léguas de tudo o que importasse. Uma amiga, sabendo-o estouvado, organizava metodicamente a toma dos medicamentos que os médicos prescreveram. Ele teimava em não os tomar: “remédios não os pedem os estouvados”, anotava, com desdém de si mesmo, sabendo-se estouvado. Foi assim que se foi afastando das pessoas. Das pessoas que lhe queriam bem, pois se nem ele a si mesmo queria bem. Depois, das pessoas circunstanciais que esbarravam no seu caminho. Sempre com a crispação de quem aferroava o cenho, uma boçalidade mal disfarçada, tiradas desagradáveis que ofendiam a quem eram destinadas. Ele era assim, um imorredoiro conspirador contra o mundo inteiro. (Se o quisessem ver abespinhado, era só sussurrar que o mundo inteiro conspirava contra ele – pois ele não dava tanta importância ao mundo.) O mais certo, se o oráculo lhe fosse consentido, era morrer afogado na plena irrelevância. Era o melhor favor que o mundo lhe podia fazer.
Ólafur Arnalds, “Woven Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=oOsuploHPjk
(Libreto) Ó empenhados no futuro, caudilhos do pretérito, tutores das clepsidras que anunciam as horas do mundo: vistam o avesso e desautorizem a condição imprecisa do tempo. Não procrastinem o tempo presente, convencidos que o destino se fará no fio do futuro. Não adiem o tempo presente os que afocinham na nostalgia e não sabem viver a não ser na espessura gasta de um tempo que foi consumido pelo próprio tempo. Sejam hedonistas do vosso tempo conjuntural. Tomem-no como se fossem forcados numa pega de caras, com a bravura que se exige para não virar a cara a tudo o que o tempo presente nos traga. Desalinhem do pretérito sem banalizar as lições do passado. Demitam-se do porvir por não saberem de que textura será feito. Todo o tempo gasto na devolução impossível de um passado e na antecipação de um futuro impreciso é um ultraje ao único tempo que não se escapa entre os dedos das mãos. É este tempo presente que de vós exige um vício salubre: sejam viciados no presente e anulem as investidas conspirativas das dimensões do tempo que ora ficaram emolduradas ora se aprestam a ser tempo presente enquanto o não são. Fujam das promessas vãs dos tempos que não pertencem ao presente, das venais juras de futuros incertos ao gosto vazio de um pretérito resgatado a um tempo inerte. Sejam viciados no presente e esgotem-no por dentro, sabendo-o inesgotável. Se preciso for, reinventem as medidas do tempo. Obriguem um minuto a transbordar sessenta segundos. Adiem o porvir em cada aditamento ao presente. Não se envergonhem da navegação por estima. Não intuam a liberdade castrada pela opressão do tempo que se decompôs e do tempo que não passa de uma jura inverosímil. Vistam a vossa melhor máscara de hedonistas. Não precisam do avesso para nada.
Dave Grohl, “Smells Like Teen Spirit” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oKU1HXMZYm4
Há pessoas que dizem: “dei tudo o que tinha e até o que não tinha.” Por dedicação a uma causa. Por desprendimento. Ou por falsa convicção de desprendimento, a tónica na impossibilidade (dar o que se não tem) para avivar uma generosidade que parece estar a sopesar um aplauso. A pior forma de vaidade é a falsa modéstia. É como o paciente que sai do médico com um aviso perentório para evitar o sal e não deixa a comida salgada. Põe-se a jeito do seu próprio cortejo fúnebre. Antecipa-o, como se desejasse outra impossibilidade: ser dele espetador, como se conseguisse levitar do túmulo e sobre a cerimónia adejasse em momento autocontemplativo. Dirá: assim como assim, os elogios em vida são matéria rarefeita. Ao menos que a morte tenha alguma serventia. E regressava, numa quietude impensável, à morada escolhida para o repouso final. Seria como estar à medida do sal e todas as armas bondosas fossem terçadas a seu favor; o sal derramado, a medida do sortilégio. Não pode o mundo, o universo na sua incompletude, ser tão madrasto: haverá um dia inscrito nas palmas das mãos, quando elas se despojarem de todas as impurezas, e prontas estejam para a dedicação sem preço. E proclama, como se entoasse preces em segredo: oxalá assim seja. Os tumultos diários não são o mapa prometido a um nascituro. Quantas vezes a impiedosa sucessão de dias não passa de um arrependimento existencial – quantas pessoas não perguntam se foi para “isto” que vieram ao mundo? O sal que se quer é sempre por medida certa. Ou então, adestra-se a alma para os corredores que se cultivam na indiferença da safra diária. A escotilha está à espreita. Por ela, o olhar toma conta de um lugar que não vem no mapa. O sal arrematado é o tempero que falta.
Idles, “Car Crash”, in https://www.youtube.com/watch?v=Cw7jOq0op5E
Não interessa se a União Europeia (UE) é uma comunidade de Estados ou uma União em nome próprio; se os Estados são os atores principais ou se a União se emancipou e impõe a sua vontade aos Estados. Não interessa se é um proto Estado federal ou uma federação de Estados, ou qualquer outra denominação que os estudiosos cunharam. Talvez faça sentido tê-la como um OPNI (objeto político não identificado), como em tempos Jacques Delors, então presidente da Comissão Europeia, propôs. Para o caso, é irrelevante.
O que interessa é que a UE não é um mero objeto decorativo ao serviço das necessidades e dos caprichos dos Estados membros. Estes, quando aderem à UE, tomam conhecimento das regras que a regem. São as regras por que se passam a reger. Querer ignorá-las, ou reinterpretá-las à mercê das conveniências do momento, é um golpe baixo que não pode ser ignorado pelos outros parceiros. A menos que os cálculos complexos da diplomacia travem uma reação contundente das instituições da União (o Conselho Europeu costuma ser travado pela inércia deste calculismo), o acórdão do Tribunal Constitucional polaco devia ser entendido como um golpe constitucional a partir de dentro da UE, protagonizado por um órgão de soberania de um Estado membro. Merecia uma reação à altura.
Muito embora a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça exibam a superioridade do direito da UE sobre os direitos nacionais e nem todos os estudiosos a aceitem de forma incontestável (por cá, alguns catedráticos de Direito Constitucional rejeitam esse vínculo hierárquico), talvez o poder simbólico da linguagem acrescente alguma luz à polémica decisão do Tribunal Constitucional polaco. A linguagem alimenta uma alegoria que procura traduzir os acontecimentos sem o hermetismo do juridiquês e a complexidade do idioma dos politólogos.
Eis a minha proposta: quando se participa num jogo, os intervenientes aderem às regras do jogo. Devem conhecer essas regras. Durante o jogo, espera-se que as cumpram, para não serem os patrocinadores da anomia. Não se excluem momentos de rutura, de onde resulta a reorganização das regras do jogo. Mas todos os Estados têm de aceitar a mudança.
O acórdão do Tribunal Constitucional polaco é muito grave por três razões. Primeiro, os juízes afirmaram a superioridade do direito polaco sobre o direito da UE e fizeram-no através de um ato unilateral. Segundo, o Tribunal Constitucional polaco sublevou-se contra o Tribunal de Justiça da UE. Terceiro, o acórdão foi aprovado ao arrepio dos demais parceiros da UE, que continuam a respeitar a legalidade da União. Eximindo-se da soberania partilhada, o autêntico património genético da UE, a Polónia ostenta o desrespeito pela legalidade instituída (à qual aderiu em 1 de maio de 2004) e, a meu ver pior, atropelou os parceiros europeus com a sua decisão unilateral. Colocando-se em posição de ilegalidade, a Polónia tornou-se um Estado pária. As consequências desta ilegalidade voluntária não podem ser menosprezadas, sob pena de se abrir um precedente que pode fraturar os alicerces da UE, convidando outros Estados a serem Estados párias dentro da própria União.
Seria de esperar que as regras que foram aceites quando a Polónia aderiu à UE continuassem a ser válidas. Se um país se amotina contra a legalidade – e mostra o seu desprezo pela UE e pelos demais Estados membros – é ele que tem de medir as consequências. A expulsão de Estados membros não está prevista nos tratados europeus. Estão previstos, outrossim, mecanismos que procuram dissuadir os Estados a adotarem comportamentos que desafiam os valores da União. Note o leitor que não estou a fazer a apologia desses valores nem de outros quaisquer, ou, sequer, a admitir que os desvalores (na ótica da União) exteriorizados pela Polónia devem levar vencimento. O que pretendo enfatizar é que a adesão a valores resulta de um ato voluntário e dessa vontade devem os atores tirar as devidas consequências, sem se eximirem às suas responsabilidades.
Podem os polacos esgrimir válvulas de escape para contornar a aplicação das regras, num exercício de criatividade hermenêutica que é apanágio dos melhores (e dos piores) juristas. O que a Polónia não pode é esquecer os seus deveres enquanto Estado membro da UE. Ou fingir que as regras do jogo mudaram apenas porque agita a alteração de circunstâncias para reinterpretar a hierarquia entre o direito da UE e o direito nacional. Sobretudo, não o pode fazer à revelia dos demais países da União, como se eles não fossem parceiros, mas simples letras mortas num jogo onde se somam os oportunismos do momento e sopesam os egoísmos nacionais.
A UE é o que o leitor desejar que ela seja – ou apenas a metáfora do elefante e do homem cego, sendo o leitor, se não for entendido em assuntos europeus, o homem cego (sem ofensa para o leitor e para os cegos). A União não pode corresponder a diferentes objetos para diferentes Estados membros, sob pena de o étimo União se evaporar na desunião. A UE não pode ser o produto do arbítrio de um Estado que decide remar contra os demais Estados e unilateralmente reinventar o modo de participação na UE.
Talvez esta seja a oportunidade para a UE se desprender do nanismo político e os demais Estados se libertarem do calculismo que os prende à recorrente hipocrisia da diplomacia. Talvez tenha chegado o momento para a UE lançar um repto à Polónia. Ou a Polónia joga o jogo de acordo com as regras, ou assume as consequências do comportamento que desafia a legalidade e hipoteca a lealdade aos demais parceiros. Como alguém dizia a propósito do Brexit, a UE passou a ser como as portas: têm serventia para entrar e para sair. Há momentos críticos que, por paradoxal que pareça, encerram um momento heurístico. O desafio da Polónia merece ser virado do avesso. A provocação deve ser devolvida aos polacos com uma interrogação a tiracolo: querem continuar na União? Seguida de uma mnemónica: estas são as regras, se quiserem continuar na UE.
Spiritualized”, “Always Together With You”, in https://www.youtube.com/watch?v=ME0ji3o05UQ
Carta aberta a um famoso cronista e ativista de múltiplas causas politicamente corretas, reserva moral da nação antes do tempo
Quando for tempo de o sol de pôr e o horizonte for banido pela penumbra, não saberás das costuras da verdade – e serás guiado ao lugar onde os presentes convivem com a exaustão da verdade, por saberem que ela é bordada pelo olhar de quem a cauciona. Não dirás “a verdade é esta”, porque essa é apenas a tua verdade e não tens autoridade (intelectual e moral) para a impor sobre os demais.
Dirás: é apenas uma força de expressão (quando dizes “a verdade é esta”). Não tens de te refugiar num pretexto para esconder as tuas intenções. Podes tecer um argumento, mostrar o teu raciocínio e o lugar aonde ele te leva, sem teres de começar a alocução por “a verdade é esta”. E se considerares que é tão importante invocar a verdade, ao menos unge-a com uma expressão evocativa que deixe perceber que é “a tua verdade”. É diferente de a apodar “esta é a verdade”, num registo absoluto. A verdade não se absolutiza. Não é um registo que se abate, tão totalitário, sobre quem te ouve ou quem te lê.
Não te esqueças que sobre ti se abate a mácula das ideias que convivem mal com a liberdade (não tem merecimento dizeres que hoje és social-democrata). Por muito que o queiras negar, mesmo que, para o efeito, recomponhas o passado para o reabilitar do opróbrio indesmentível. Porventura é essa ossatura que te influencia a proclamar, ufano e convencido, “a verdade é esta”. Nem toda a gente tem de aceitar o mundo como tu o vês. Não podes arrastar para a exclusão – ou, o que seria pior, para a mitomania – os que divergem da tua mundividência. Pois se eu discordar de “a verdade é esta”, serei tido como mentiroso? Quando te apresentas de modo tão totalitário como credencial de uma ideia ou da tua interpretação de um facto, estás a causar essa exclusão. Como se não fosse admissível a dissidência da tua hermenêutica.
Sabes? As palavras não são inocentes. Quem as prepara é ainda menos inocente. Nas palavras que ficam emolduradas para memória futura, devemos ter o cuidado de as empregar com diligência. Para não sermos apanhados em falso e sobre nós se abater a negação do estatuto que pretendemos ostentar em público – um fazedor de opinião, senador antes do tempo.
Spoon, “The Hardest Cut”, in https://www.youtube.com/watch?v=i4vl4T1hEuQ
Nem com a melhor da maquilhagem conseguia ser um disfarce de si mesmo. Atirava-se, sem comedimentos, aos que auguravam um confortável sucesso como agente secreto: “eu não servia para agente secreto. Sou indisfarçável. O antónimo do 007.”
E não foi por não tentar. Quando foi acometido por uma crise existencial, sem saber o que fazer à carreira, logo depois de ter abandonado as Finanças (onde trepou na hierarquia até ao posto de inspetor-principal), tentou os serviços secretos. Ainda hoje está fora da compreensão a súbita pulsão pelos serviços secretos. Podia ter escolhido os submarinos, ou a ajuda humanitária num pobre país africano, ou a carreira diplomática, ou as organizações internacionais (candidatas não faltavam), ou um qualquer submundo. Ficou-se pelos serviços secretos.
Foi aos exames, sem convicção. Durante o processo de recrutamento, cada alvorada parecia um fio à meada sem paradeiro. Era como se estivesse num mapa estranho e ele órfão nessa geografia. Sem convicção, foi saltando as etapas eliminatórias. Na hora H, quando tudo se encaminhava para ser agente secreto, faltou à derradeira incumbência. Devia ter bons predicados para a função. Apesar de ter faltado àquela incumbência (estava escrito no regulamento, com clareza: “os faltosos serão automaticamente eliminados do processo de recrutamento”), um dos chefes chamou-o ao gabinete. Faltou, outra vez. Receava ter de sucumbir à persuasão do manda-chuva. Nessa altura, já tinha tomado a decisão: não servia para agente secreto.
Um dos melhores amigos, o único que estava ao corrente deste processo, continuava atónito, agora em medida dupla. Nunca percebera por que o amigo concorreu aos serviços secretos. Um dia disse-lhe:
- Tu nem no Carnaval te consegues disfarçar. És a pessoa mais indisfarçável que conheço. Estás nos antípodas dos serviços secretos. Continuas a teimar na imprevisibilidade.
- Tens razão. Ainda por cima, atenta contra os nossos princípios anárquicos...
- E agora, que estavas com um pé dentro dos serviços secretos, decides vir embora sem dizer nada!
- É a imprevisibilidade de que falas. Ou então, apenas não sei o que quero. Para saber o que não quero, tenho de estar às suas portas para me autoexcluir.
Jane’s Addistion, “Just Because” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=165xjOwk78s
Alguém avisou que ia tirar o dia porque não se sentia bem. Deduziu-se que seria de deduzir um dia laboral. Um dia a menos a crédito do empregador. Se os sinais matemáticos não enganam, um dia a menos para quem dá emprego é um dia a mais na contabilidade do trabalhador. Como se fosse possível, por inversão matemática, acrescentar um dia na vida de quem tira o dia porque não se sente bem (ou porque, aldrabão, arranjou um pretexto para fazer a vontade à indolência, inominável inimiga da rotina do trabalho).
Em sentido literal, é impossível tirar o dia. Quando alguém anuncia que tira o dia para faltar ao trabalho, tira-o do crédito que o empregador tem sobre o trabalho de quem contratou. Mas o dia não é tirado do calendário, como se fosse possível saltar diretamente de um domingo para uma terça-feira sem parar no apeadeiro da segunda-feira. Outro tanto se dirá da contabilidade na ótica do trabalhador: o dia tirado ao trabalho é para usufruto pessoal, seja porque um achaque o impossibilitou para a função, seja porque se escondeu num ardil por a preguiça ter falado mais alto. É para usufruto pessoal, mas não se acrescenta à sua conta pessoal de dias – um exercício labiríntico, preso às malhas da impossibilidade, por se tratar de uma contabilidade que só se pode arrematar quando se deixou de fazer parte dos vivos.
Tirar o dia é um logro. O dia não se tira e põe como se fôssemos os tutores do tempo. Ou como se o tempo fosse indulgente com os nossos caprichos. Quando se diz “tirar o dia” é como se houvesse uma súbita hibernação do tempo e de nós não se esperasse coisa alguma durante o dia que foi diligentemente suspenso do calendário.
Seria um exercício, interessante e especulativo, fazer a cartografia dos dias tirados (sem importarem as causas que lhes deram origem). Seria como ver um calendário desdentado por cada dia que tivesse sido (re)tirado ao calendário. O melhor critério, para evitar as cáries galopantes do calendário, seria patrocinar uma reinvenção da expressão idiomática para que “tirar o dia” fosse banido do património dos lugares-comuns.
James Blake, “Friends That Break Your Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=nWzPiLCcGQI
A culpa não arrefece na estepe onde desaguam as lágrimas. Por dentro do sangue, evapora-se o dia sentido. Destrona-se o dia a favor da noite primaz. Arruma-se o coldre onde se albergam as palavras sem fiel. É o chão que não chora, a carne empedernida que nem com todas as lágrimas derramadas seria macio.
Podia ser que se tratasse de um chão infecundo, as poeiras vindas de lugares contaminados com o ressentimento de outros apeadeiros. Não se sabia. Naquele chão não havia sementes que pudessem convocar o bramido da Primavera. Não havia vida a fruir nos alvores da Primavera. Pelas estações fora, a aridez era uma constante. Ao menos, ninguém protestava contra a hibernação da natureza que se ausentava da sua pujança. A nostalgia não entrava no labirinto do vocabulário.
Diziam que eram máscaras que substituíam os rostos cansados. Não se viam, os rostos cansados, disfarçados pelo véu que os açambarcava. Mas também não se viam essas máscaras. Outros juravam que ninguém precisava de ser procurador dos rostos para lhes garantir a melancolia. Era a rima inalienável do chão sem fermento que dava nome à geografia. Mas era uma melancolia à parte, ímpar. Os entendidos confiavam que fosse causada pela penumbra perene que parecia tomar conta do horizonte. Era como se as poeiras levantadas do chão embaciassem o olhar, na terra sem vulcões que parecia um cemitério de cinzas.
As palavras passavam mudas entre a indiferença dos tempos. Os rostos eram netos de um emudecimento geral. Sobre eles deitava-se um torpor que vinha a preceito de um chão que não conhecia ruínas. Nem assim as pessoas capitulavam. Os seus olhos escondiam um fundo oculto que guardava um lance de esperança. Não era o chão sem pátria que os desmotivava. Subiam a um promontório e de lá ficavam, de atalaia ao avesso do passado.
O chão não conta. Quem o habita é que lhe afeiçoa um rosto.