Há pessoas que dizem: “dei tudo o que tinha e até o que não tinha.” Por dedicação a uma causa. Por desprendimento. Ou por falsa convicção de desprendimento, a tónica na impossibilidade (dar o que se não tem) para avivar uma generosidade que parece estar a sopesar um aplauso. A pior forma de vaidade é a falsa modéstia. É como o paciente que sai do médico com um aviso perentório para evitar o sal e não deixa a comida salgada. Põe-se a jeito do seu próprio cortejo fúnebre. Antecipa-o, como se desejasse outra impossibilidade: ser dele espetador, como se conseguisse levitar do túmulo e sobre a cerimónia adejasse em momento autocontemplativo. Dirá: assim como assim, os elogios em vida são matéria rarefeita. Ao menos que a morte tenha alguma serventia. E regressava, numa quietude impensável, à morada escolhida para o repouso final. Seria como estar à medida do sal e todas as armas bondosas fossem terçadas a seu favor; o sal derramado, a medida do sortilégio. Não pode o mundo, o universo na sua incompletude, ser tão madrasto: haverá um dia inscrito nas palmas das mãos, quando elas se despojarem de todas as impurezas, e prontas estejam para a dedicação sem preço. E proclama, como se entoasse preces em segredo: oxalá assim seja. Os tumultos diários não são o mapa prometido a um nascituro. Quantas vezes a impiedosa sucessão de dias não passa de um arrependimento existencial – quantas pessoas não perguntam se foi para “isto” que vieram ao mundo? O sal que se quer é sempre por medida certa. Ou então, adestra-se a alma para os corredores que se cultivam na indiferença da safra diária. A escotilha está à espreita. Por ela, o olhar toma conta de um lugar que não vem no mapa. O sal arrematado é o tempero que falta.
8.11.21
À medida do sal (short stories #365)
Dave Grohl, “Smells Like Teen Spirit” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oKU1HXMZYm4
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