“Raios partam se não consigo vencer a tempestade”, resmungava, enquanto atirava o corpo contra o vento iracundo que não viera no boletim meteorológico. “Ele não há vento mais teimoso do que a minha teimosia”, continuava a vociferar, como se, ao fazê-lo, arregimentasse as forças quase sobre-humanas que eram precisas para arrotear a tempestade. Ninguém o advertira que sair à rua e meter-se no meio de uma tempestade não era sensato. Assim como assim, não dava ouvidos a ninguém. Assim fora sempre que caíra no cisma da doença. Ele era o último a admitir que estava doente; em rigor: nem quando acamara admitiu que era por causa da doença (“estes médicos são uns exagerados”, protestava). Que não lhe aconselhassem moderação, que a vida era para ser levada através de um fio condutor que misturava ações vertiginosas e impensadas com a descontração de quem parecia estar a léguas de tudo o que importasse. Uma amiga, sabendo-o estouvado, organizava metodicamente a toma dos medicamentos que os médicos prescreveram. Ele teimava em não os tomar: “remédios não os pedem os estouvados”, anotava, com desdém de si mesmo, sabendo-se estouvado. Foi assim que se foi afastando das pessoas. Das pessoas que lhe queriam bem, pois se nem ele a si mesmo queria bem. Depois, das pessoas circunstanciais que esbarravam no seu caminho. Sempre com a crispação de quem aferroava o cenho, uma boçalidade mal disfarçada, tiradas desagradáveis que ofendiam a quem eram destinadas. Ele era assim, um imorredoiro conspirador contra o mundo inteiro. (Se o quisessem ver abespinhado, era só sussurrar que o mundo inteiro conspirava contra ele – pois ele não dava tanta importância ao mundo.) O mais certo, se o oráculo lhe fosse consentido, era morrer afogado na plena irrelevância. Era o melhor favor que o mundo lhe podia fazer.
10.11.21
Remédios não os pedem os estouvados (short stories #367)
Rádio Macau e Francisco Rebelo, “Uma Questão de Tempo”, in https://www.youtube.com/watch?v=11p3U-xNfLg
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