17.11.21

Poente

Soundgarden, “Black Hole Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=3mbBbFH9fAg 

O crepúsculo faz lei. Dita-o o entardecer. E, todavia, o poente segrega a sua própria exceção. Se o olhar se afivelar pelo poente será tutor da derradeira claridade à medida que o crepúsculo toma conta do nascente. O corpo atira-se para um labirinto de paradoxos. De costas para o crepúsculo nascente, prende o olhar aos últimos lampejos de claridade. 

Se do poente não há notícias é porque à noite se pressentem os demónios. Dos demónios que sobejam na safra da noite – pois da noite se diz que é lá que se acoitam os fantasmas. Não se perceba este desejo de conviver com entidades castradoras. A noite não se expõe como o avesso do dia; é a sua continuação. 

No poente amparam-se as palavras malditas. Procuram a noite como pretexto. A noite é o véu que as disfarça de intenções. Se delas forem as metáforas triunfantes, dir-se-á que o poente enfeitou a noite com as miraculosas pétalas que anulam o mau-olhado que os feiticeiros atribuem à noite. Só que o poente não passa de uma entidade tangível. Funde-se com a fina linha que arboriza o horizonte. Sabe-se que depois ainda há ponte por revelar. 

A geografia podia não importar tanto. Se as palavras emudecem no silêncio da noite enquanto percorrem o poente, sabem que haverá um lugar em que a claridade depõe o crepúsculo. Essa luz clara invade a noite e faz com que ela perca o seu nome. O poente encontra-se com o nascente. A roda-viva do mundo deixa à mostra esse sortilégio inacabado. Permanentemente inacabado.

Dizem que há um lugar onde o mundo acaba. Dizem que o poente se encanta com o paradeiro perdido onde os lugares enfeitiçados são desmentidos. Se o sangue deixasse de ser uma constante ebulição e as palavras fossem tomadas pelo seu ângulo morto, o poente deixaria de ser um lugar apenas imaginário. Teria finitude, para se afeiçoar a uma mapa ao menos inventado. 

Desse lugar, o poente seria o porta-voz dos sonhos que não chegam a ter cais onde aportar. Seria um lugar inacabado. À espera da mão-de-obra criativa dos poetas ávidos de terçar as palavras que emprestam beleza à boca que as pronuncia. O poente não mais seria uma desesperança. Investir-se-ia no lúdico lugar onde os mistérios se encontram com os olhos vendados.

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