Estava perdido a um canto da loja do artesão de antiguidades, o cadeirão que, pela pose extática, dir-se-ia ter levado nobre vida enquanto foram de fausto os dias dos seus proprietários. Os bordões dourados são apenas uma circunstância do passado, gastos e desmaiados, mal se notando que em tempos terão carregado um dourado flagrante. Os braços do cadeirão exibem as provas da usura do tempo e dos braços de quem nele procurou repouso: a fazenda, que seria de primeira escolha, está coçada e mal se nota de que filigrana foi feita a poltrona.
O usuário era alguém com pergaminhos nobiliárquicos – um herdeiro datado da nobreza que perdeu os privilégios. Condenado à decadência, assistiu à dissolução do património e à privação das genuflexões que lhe eram devidas noutros tempos. Envelheceu e durante muito tempo. Esse foi o maior castigo que deus lhe impôs (ele acreditava em Deus, até ter percebido o jaez do castigo divino): forçá-lo a assistir duradouramente à sua decadência.
À morte do fidalgo, o património restante, mobiliário incluído, caiu em hasta pública por omissão de herdeiros legítimos. Um liquidatário judicial enamorou-se pela poltrona e, às escondidas, desviou-a do leilão, não pagando um avo. Trouxe-a para casa, com a ajuda de um amigo que era companhia de duvidosos esquemas. A poltrona fez paragem num apeadeiro antes de enfeitar a sala da casa do liquidatário judicial: era preciso um restauro que lhe devolvesse a grandiosidade de outrora. O liquidatário judicial era, em segredo, convicto monárquico e sonhava com a promoção aristocrática. Nem que fosse apenas através do pomposo património mobiliário que enfeitava a casa.
Uma noite, o lugar foi assaltado. Os meliantes terão estimado que a poltrona tinha um valor considerável (“este ‘sófá’ – sic – tem o ar de ter vindo de uma família abastada”). Dias depois foi encontrada aos caídos entre o amontoado de tralha na feira da ladra. O feirante comprou-a a dois drogados que julgaram ter feito um grande negócio ao vender o objeto por trinta euros. O feirante sabia que a poltrona valia muito mais, apesar do estado decadente que suplicava por um restauro.
Quem comprou a poltrona foi uma nova-rica, para notória insatisfação do consorte que se limitava a fazer a vontade enquanto encolhia os ombros – a metáfora acabada da resignação a que se resumira. A dondoca pagou duzentos euros e achou ser um achado, a compra. Poucas semanas depois, o consorte extravasou a impaciência acumulada nos (por si considerados) longos anos de matrimónio, extraindo-se, unilateralmente, aos deveres legais do enlace. Por pirraça, exigiu a poltrona na hora da meação do património conjunto. Não sabendo o que fazer a tão inestético objeto decorativo, enjeitou-o para o bas fond de um armazém na periferia, onde a poltrona estava condenada ao definhamento final (tantas as ratazanas que habitavam o lugar a meias com uma humidade que ia ao fundo dos ossos).
Foi por acaso que um antiquário descobriu o armazém. Teve um furo no pneu e a falta de destreza levou-o a procurar ajuda. O fiel depositário do armazém estava, por acaso, no local. (Era a visita semanal para inventariar os objetos armazenados.) As ferramentas necessárias para a mudança do pneu estavam dentro do armazém. Foi o faro do antiquário que o levou a descobrir a poltrona, meia perdida entre os despojos de muitas coisas que só não eram inúteis porque alguém tinha um espírito arquivista irrenunciável. O antiquário negociou a poltrona por dezoito euros. Sem demora, levou-a ao artesão que cuidava dos restauros em seu nome.
Tempos depois, um terrível incêndio florestal consumiu a oficina onde o artesão restaurava as velharias por conta das encomendas de outros. A poltrona ficou reduzida ao esqueleto que era apenas feito das molas que emprestavam conforto às almofadas subjacentes. O resto, desfez-se em cinzas. A par dos pergaminhos aristocráticos do seu original proprietário.
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