O homem procura estupidamente uma centelha do passado. Procura-a no vesúvio do presente, acreditando na fusão dos diferentes tempos. Diz:
- O tempo é um contínuo. Separar o tempo presente do passado é uma loucura, um artifício para vivermos aprisionados na ditadura do presente.
Olha em redor ao perscrutar as veias que transportam o sangue álgido. Apetecia-lhe meter as mãos por dentro das veias e temperar o sangue. Jura que é o mesmo que soube ser ao arranjar as memórias num livro sem prefácio nem epitáfio. Teme a morte. Não concebe o mundo depois da morte. Um dia interrogou-se, mas só a si mesmo (que teria pudor em exibir esta ostentação se não estivesse limitada à sua ardósia):
- O que será do mundo depois da minha morte?
Ele sabia de tudo o que trazia como lastro. É como se conseguisse inventariar todas as pedras depositadas no leito do rio e soubesse dar nome aos peixes que atravessam o caudal. E ele deposto diante da angústia, penhorado pelo futuro que dizia desconhecer, abrindo janelas de par em par à espera das bocas dinamite que trouxessem as boas novas. Queria que dessas bocas houvesse anúncios de destruição da boçalidade, que a desconfiança que costura os frágeis laços entre as pessoas tinha sido desmontada peça-por-peça, que já não havia espaço para a maldade no dicionário das coisas. Queria que todo o mar fosse um espelho de liberdade e não houvesse regentes que traduzem o poder em proveito próprio sob o disfarce do interesse comum. Ele queria dessas bocas um módico de mudança, nem que fosse a indicação precisa no mapa do lugar onde tudo seria um fingimento possível, o exílio voluntário para desalinhar da angústia e do cansaço do mundo que obteve provimento.
Queria uma biografia que fosse dissidente dos lugares que foram seus apeadeiros. Que uma centelha luminescente convocasse uma porta de saída sem dar entrada num precipício. Ou então, se o precipício fosse o pretexto para o exílio voluntário, queria que ele entrasse na feição da sua biografia. Porque protestava contra os obnóxios que insidiosamente colonizam as biografias das pessoas, esvaziando-as. Ai de quem o tentasse consigo: envergaria as luvas de boxe e, com a destreza possível, cuidaria de dar luta contra a dissolução da sua biografia. Nem que, a seu desfavor, os obnóxios militantes da purificação forçada do novo homem novo invocassem a sua dissoluta biografia.
Seria o que fosse, sem que ninguém pudesse contrariar a maré que deu ao areal a biografia selada com o seu nome. Mas de uma biografia se tratava. Modesta, muito provavelmente insignificante. A sua biografia, habilitada pelo Direito mais nobre.
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