23.11.21

Descafeinado, ou “what difference does it make?”

The Smiths, “What Difference Does It Make” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LZyhrQpZ9-M

Dantes, escrevia-se cartas. Os correios serviam para mais do que requisitar encomendas. As lojas pediam visitas in personae. Pagava-se a dinheiro vivo, que o dinheiro ainda não se tinha desmaterializado. Ou havia dinheiro (vivo), ou o fiado não vinha atrelado ao dinheiro de plástico que fez muita gente perder-se de conta(s) – ainda não havia dinheiro de plástico. Dantes, escrevia-se cartas.

Dantes: que palavra inútil. A nostalgia arrefece o sangue, torna-nos répteis sem aptidão para ler o chão ladrilhado onde se compõe o tempo que é nosso (porque é nele que vivemos). Dizemos “dantes” como se de lá voltar fosse demiúrgico. Pode-se contrapor que os tutores da bondade do presente (por oposição à inutilidade de deitar contas ao passado) estão emaranhados numa teia de ingenuidades. Dirão os desconfiados que o juízo não pode ser a refrangência de bem-estar acautelada pelo avanço da técnica. Se o for, não passamos de um simulacro, anestesiados pelas facilidades que a técnica avançada nos trouxe.

Dantes escrevia-se cartas. Agora enviamos emails ou nótulas através das redes sociais onde muitos resumem a sua existência. Continuamos a comunicar. Podem os conservadores repudiar o arremedo de linguagem que atropela a gramática, que continuará a ser uma linguagem e, portanto, um instrumento da comunicação. Deixámos de ir aos correios (menos os velhinhos que descontam o cheque da reforma e lá pagam a luz e a água e o gás e o telefone e “a contribuição predial”). Mas os correios chegam até nós. Não queremos ir às lojas, porventura pelos muitos estigmas alimentados pela misantropia, ou apenas porque, hedonistas, somos peões do comodismo. Mas as lojas entregam a mercadoria nas nossas casas. Quase não usamos notas e moedas, viciados na higiene e na facilidade do dinheiro eletrónico e no dinheiro de plástico. Mas continuamos a alimentar o processo económico. 

Os puristas protestam: muito deste hodierno viver soa a artificial; muito se desfaz em simulacros do genuíno. Mas, o que é genuíno? Que diferença faz saber se somos súbditos do genuíno, ou se capitulámos à sua adulteração? Continuamos a escrever cartas, por outros meios. Continuamos a escrever – e isso é que importa.

Sem comentários: