24.11.21

A bússola da liberdade condicional

 

The Jesus and Marcy Chain, “I Love Rock ‘N’ Roll”, in https://www.youtube.com/watch?v=veb_3IWtiJM

A Áustria entrou em confinamento e vai tornar obrigatória a vacinação contra a COVID-19Quatro jogadores do Bayern de Munique recusaram a vacina, entrando em isolamento profilático (devido a contacto com casos positivos). O clube não vai pagar a remuneração correspondente às duas semanas de ausência. Aos poucos, mais Estados ponderam tornar obrigatória a vacina contra a COVID-19. A fronteira da liberdade individual parece esbater-se no fumo da retórica que regressa a uma discussão que percorre páginas e páginas de livros de filosofia moral: a liberdade individual deve ceder perante o bem comum sempre que lhe cause danos. Mais difícil é localizar a fronteira entre os dois valores.

A liberdade individual dissolve-se no argumentário dos defensores de medidas musculadas que impõem a vacina obrigatória. A descrença no livre-arbítrio, e na inerente responsabilidade individual, aumenta na proporção do pânico que ameaça tomar conta do espaço público com mais um crescimento de casos de COVID-19. A lógica assenta na vacinação obrigatória para dissipar as hipóteses de contágio. Em socorro desta linha argumentativa, a correlação (mas ainda não a causalidade inequívoca) entre novos casos de COVID-19 e pessoas que não estavam vacinadas. 

Os que se agarram à liberdade individual como esteio inviolável sentem-se cercados. Protestam. Recusam a vacina e outras medidas que cerceiem a sua liberdade (novos confinamentos; apresentação obrigatória de certificados de vacinação ou de testes negativos à COVID-19). Alguns, mais radicais, tecem extrapolações rasantes a teorias conspirativas: é o Estado a mostrar um músculo incompatível com a democracia liberal (nos Estados que o são). Em resposta, os governos esgrimem uma nova TINA (“there is no alternative”): se estas medidas excecionais não forem adotadas, viveremos reféns do vírus, a pandemia não capitulará e mais mortes engrossarão as estatísticas. No meio do xadrez argumentativo, é mais difícil encontrar a bússola da liberdade. A liberdade individual está hipotecada? E, sendo-o, é defensável que as limitações se devem às exigências de contenção da pandemia?

Estas são perguntas a que é difícil responder. É importante contextualizar: mesmo nas democracias liberais, não é de agora a adoção de medidas restritivas sempre que circunstâncias excecionais as convocam. O recurso a estas limitações tem de ser enquadrado pela Constituição. Ela define em que condições podem ser impostas restrições à liberdade individual através do estado de exceção. Para muitos, os requisitos de legitimidade das restrições à liberdade individual foram atendidos durante a pandemia. A emergência justificou a exceção. Esta legitimou a entorse temporária da liberdade individual. Em nome do bem comum. E se fomos passivos enquanto destinatários destas medidas? E se aceitámos, acriticamente, a justificação do estado de exceção? E se fomos, por via da passividade, cúmplices da limitação da liberdade individual?

Que o leitor não tresleia estas interrogações. Elas são parte do método inquisitivo, tão caro à filosofia. A ausência de espírito interrogativo talvez seja a maior fenda na liberdade individual no percurso da pandemia até hoje. Deixar de colocar estas interrogações (que têm de começar como autointerrogações) não nos filia num sombrio movimento negacionista. É importante que esta delimitação de fronteiras fique bem estabelecida. Uma das provas de como somos levados a um estar acrítico é o acantonar imediato, num qualquer sector negacionista, dos que ousam erguer interrogações que desafiam o consenso imperativo. O raciocínio que me trouxe até aqui em momento algum se serviu do argumentário lunático dos negacionistas. Nem o fará daqui para diante. 

Este é o tempo certo para inquirir sobre o paradeiro da liberdade individual. Mais do que dantes, quando, no auge da pandemia, as limitações à liberdade eram mais visíveis. Atravessamos um tempo importante, pois as coisas tornam-se paradoxalmente mais baças. Os que se insurgem contra a vacinação obrigatória, ou contra outras medidas que restringem a sua liberdade, convocam a rebeldia por ajuizarem que a sua liberdade individual está a ceder aos caprichos dos mandantes. Temo que estejam a exagerar no diagnóstico. O exercício pedagógico que se impõe é inspecionar os fundamentos das democracias liberais e perquirir o significado da liberdade individual. Não o significado teórico, mas o que se traduz na prática corrente. Sem que este exercício corresponda à legitimação das limitações que a prática banalizou.

As democracias liberais são atravessadas pelas exigências do Estado social e pela complexidade do mundo moderno, permeável à fragmentação individual e exposto a novas formas de intrusão possibilitadas pelas facilidades tecnológicas. A liberdade individual foi sendo repensada numa democracia assim adulterada. Silenciosamente, e de forma gradual, a democracia foi reconfigurada. Faz sentido falar de liberdade condicional em vez esgrimir a pura liberdade individual. Esta abre-se a um leque de restrições e exceções e à reordenação dos valores que a deixam num plano inferior quando alguém (normalmente as autoridades, no uso do seu poder de autoridade) invoca a necessidade de a liberdade individual se submeter ao bem comum. 

Não foi a pandemia e as suas exigências que trouxeram visibilidade a esta metamorfose. A pandemia tornou este dilema visível. Ou aceitamos que o tabuleiro em que nos movemos foi alterado, ou admitimos que as peças que somos nesse tabuleiro têm uma natureza diferente da que julgávamos. Para, então, concluirmos que a liberdade condicional ter-se-á tornado na metáfora da liberdade individual.

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