5.11.21

A Polónia quer mesmo o “Polexit”?

Idles, “Car Crash”, in https://www.youtube.com/watch?v=Cw7jOq0op5E

Não interessa se a União Europeia (UE) é uma comunidade de Estados ou uma União em nome próprio; se os Estados são os atores principais ou se a União se emancipou e impõe a sua vontade aos Estados. Não interessa se é um proto Estado federal ou uma federação de Estados, ou qualquer outra denominação que os estudiosos cunharam. Talvez faça sentido tê-la como um OPNI (objeto político não identificado), como em tempos Jacques Delors, então presidente da Comissão Europeia, propôs. Para o caso, é irrelevante.

O que interessa é que a UE não é um mero objeto decorativo ao serviço das necessidades e dos caprichos dos Estados membros. Estes, quando aderem à UE, tomam conhecimento das regras que a regem. São as regras por que se passam a reger. Querer ignorá-las, ou reinterpretá-las à mercê das conveniências do momento, é um golpe baixo que não pode ser ignorado pelos outros parceiros. A menos que os cálculos complexos da diplomacia travem uma reação contundente das instituições da União (o Conselho Europeu costuma ser travado pela inércia deste calculismo), o acórdão do Tribunal Constitucional polaco devia ser entendido como um golpe constitucional a partir de dentro da UE, protagonizado por um órgão de soberania de um Estado membro. Merecia uma reação à altura.

Muito embora a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça exibam a superioridade do direito da UE sobre os direitos nacionais e nem todos os estudiosos a aceitem de forma incontestável (por cá, alguns catedráticos de Direito Constitucional rejeitam esse vínculo hierárquico), talvez o poder simbólico da linguagem acrescente alguma luz à polémica decisão do Tribunal Constitucional polaco. A linguagem alimenta uma alegoria que procura traduzir os acontecimentos sem o hermetismo do juridiquês e a complexidade do idioma dos politólogos.

Eis a minha proposta: quando se participa num jogo, os intervenientes aderem às regras do jogo. Devem conhecer essas regras. Durante o jogo, espera-se que as cumpram, para não serem os patrocinadores da anomia. Não se excluem momentos de rutura, de onde resulta a reorganização das regras do jogo. Mas todos os Estados têm de aceitar a mudança. 

O acórdão do Tribunal Constitucional polaco é muito grave por três razões. Primeiro, os juízes afirmaram a superioridade do direito polaco sobre o direito da UE e fizeram-no através de um ato unilateral. Segundo, o Tribunal Constitucional polaco sublevou-se contra o Tribunal de Justiça da UE. Terceiro, o acórdão foi aprovado ao arrepio dos demais parceiros da UE, que continuam a respeitar a legalidade da União. Eximindo-se da soberania partilhada, o autêntico património genético da UE, a Polónia ostenta o desrespeito pela legalidade instituída (à qual aderiu em 1 de maio de 2004) e, a meu ver pior, atropelou os parceiros europeus com a sua decisão unilateral. Colocando-se em posição de ilegalidade, a Polónia tornou-se um Estado pária. As consequências desta ilegalidade voluntária não podem ser menosprezadas, sob pena de se abrir um precedente que pode fraturar os alicerces da UE, convidando outros Estados a serem Estados párias dentro da própria União.

Seria de esperar que as regras que foram aceites quando a Polónia aderiu à UE continuassem a ser válidas. Se um país se amotina contra a legalidade – e mostra o seu desprezo pela UE e pelos demais Estados membros – é ele que tem de medir as consequências. A expulsão de Estados membros não está prevista nos tratados europeus. Estão previstos, outrossim, mecanismos que procuram dissuadir os Estados a adotarem comportamentos que desafiam os valores da União. Note o leitor que não estou a fazer a apologia desses valores nem de outros quaisquer, ou, sequer, a admitir que os desvalores (na ótica da União) exteriorizados pela Polónia devem levar vencimento. O que pretendo enfatizar é que a adesão a valores resulta de um ato voluntário e dessa vontade devem os atores tirar as devidas consequências, sem se eximirem às suas responsabilidades.

Podem os polacos esgrimir válvulas de escape para contornar a aplicação das regras, num exercício de criatividade hermenêutica que é apanágio dos melhores (e dos piores) juristas. O que a Polónia não pode é esquecer os seus deveres enquanto Estado membro da UE. Ou fingir que as regras do jogo mudaram apenas porque agita a alteração de circunstâncias para reinterpretar a hierarquia entre o direito da UE e o direito nacional. Sobretudo, não o pode fazer à revelia dos demais países da União, como se eles não fossem parceiros, mas simples letras mortas num jogo onde se somam os oportunismos do momento e sopesam os egoísmos nacionais. 

A UE é o que o leitor desejar que ela seja – ou apenas a metáfora do elefante e do homem cego, sendo o leitor, se não for entendido em assuntos europeus, o homem cego (sem ofensa para o leitor e para os cegos). A União não pode corresponder a diferentes objetos para diferentes Estados membros, sob pena de o étimo União se evaporar na desunião. A UE não pode ser o produto do arbítrio de um Estado que decide remar contra os demais Estados e unilateralmente reinventar o modo de participação na UE.

Talvez esta seja a oportunidade para a UE se desprender do nanismo político e os demais Estados se libertarem do calculismo que os prende à recorrente hipocrisia da diplomacia. Talvez tenha chegado o momento para a UE lançar um repto à Polónia. Ou a Polónia joga o jogo de acordo com as regras, ou assume as consequências do comportamento que desafia a legalidade e hipoteca a lealdade aos demais parceiros. Como alguém dizia a propósito do Brexit, a UE passou a ser como as portas: têm serventia para entrar e para sair. Há momentos críticos que, por paradoxal que pareça, encerram um momento heurístico. O desafio da Polónia merece ser virado do avesso. A provocação deve ser devolvida aos polacos com uma interrogação a tiracolo: querem continuar na União? Seguida de uma mnemónica: estas são as regras, se quiserem continuar na UE.

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